Heráclito de Éfeso: pai, filho e espírito da Santa Madre Dialética

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Devotos da Santíssima Trindade Dialética prestam holocaustos argumentativos em honra a Heráclito, louvado como “o Criador”.

No entanto, tudo que a Sagrada Escritura Efesiana tem a dizer sobre “movimento”, “contrariedade”, “processualidade” (onde?) e demais dialetices se limita a uns poucos fragmentos – que, além disso, não oferecem nenhuma formulação consistente, senão quando alguém faz uma interpretação qualquer que tapa os buracos da grade e amarra as frases de modo a torná-las algo compreensíveis e minimamente coerentes. Então elas passam a merecer um nome, pois se tornaram elementos de uma forma unitária de pensamento teórico: a “dialética heracliteana”.

Abaixo se vê o que os fiéis juram ser um sistema filosófico completo e avançado, determinado por categorias, articulado segundo leis etc., mas que, é fácil notar, não passam de imagens – carentes dos conceitos que supostamente estariam ilustrando. Talvez seja mesmo uma filosofia que se fez no fundo de uma caverna iluminada por fogueiras:

— 49a. HERÁCLITO, Alegorias, 24: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”.

(Conta essa pro seu professor de geografia!)

— 91. PLUTARCO, Coriolano, 18 (p. 392 B): “Em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo, segundo Heráclito, nem substância mortal tocar duas vezes na mesma condição; mas pela intensidade e rapidez da mudança dispersa e de novo reúne (ou melhor, nem mesmo de novo nem depois, mas ao mesmo tempo) compõe-­se e desiste, aproxima-se e afasta-­se”.

— 51. HIPÓLITO, Refutação, IX, 9: “Não compreendem como o divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tensões contrárias, como de arco e lira”.

(Divergente consigo mesmo, ou consigo mesmo concorda? Não é à tôa que Heráclito era conhecido como “o obscuro”, graças aos seus poderes dialéticos.)

— 59. IDEM, ibidem, IX, 10: “A rota do parafuso, reta e curva, é uma e a mesma”.

(Um pensamento tão profundo quanto mais giramos o parafuso no sentido horário, e tão superficial quanto no inverso.)

— 60. IDEM, ibidem, IX, 10: “A rota para cima e para baixo é uma e a mesma”.

Ok.

Em sua famosa biografia dos filósofos gregos, Diógenes Laércio (sec. III d.C.) conta ainda um causo da vida (ou melhor, do fim da vida) do pensador de Éfeso, quando este resolve “aplicar” sua dialética para tratar de uma hidropisia (vulgarmente conhecida como “barriga d’água”):

— “Acometido de hidropisia, desceu à cidade e pôs-se a perguntar enigmaticamente aos médicos se podiam fazer de um aguaceiro uma seca; como eles não o compreendessem, se dirigiu a um estábulo e pediu a seus escravos que o cobrissem com esterco, e esperou que a água fosse evaporada pelo calor do estrume. Nada conseguindo assim, findou a vida aos sessenta anos”.

O nobre Heráclito morreu literalmente na merda. “Oh, dialética, por que me abandonaste?”

Os outros tantos fragmentos que permeiam os já citados acima falam de como Homero era um idiota, de pessoas “descompassadas” que se assemelhavam a surdos, do sono como aquilo que se vê dormindo, da largura do Sol como equivalente à de um pé humano etc.

Entretanto, um fragmento em especial merecia a atenção dos seguidores da Santa Madre Dialética:

— 47, Diógenes Laércio, IX, 73: “Não conjecturemos à tôa sobre as coisas supremas”.

Tais como, p.ex., os “princípios dialéticos da realidade” – que constituem o cerne da doutrina efesiana tal como irá chegar, por meio de um buraco quântico no espaço-tempo do crânio dos dialetófilos, em Marx.

Enfim. Fazer suco filosófico com bagaço doxográfico ressequido de esterco velho pode ser academicamente divertido. Mas tem tanto valor de conhecimento quanto uma asneiragem.

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Heráclito
um filósofo dialetílico

Stalinismo: idealismo e praticismo

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Constantemente eu escuto ou leio stalinistas (se se preferir, “marxistas-leninistas”) defenderem a falsa idéia de que Marx teria afirmado que a relação entre teoria e prática é de subordinação da primeira à segunda.

Donde a autocomplacência com a própria pequenez intelectual gerar juízos contra o trabalho teórico de rigor, que não passaria de divagações ao vento, academicismo etc., puro privilégio burguês.

 
Tanto é verdade que a teoria se subordina à prática quanto o contrário. Ou será que é possível haver prática revolucionária sem teoria revolucionária? Ou qualquer forma de ação sem um pensamento que a oriente?

“Há teoria, mas a prática é que a orienta”. Ora, pra quê? Se não for para a teoria guiar a prática, então eis aí uma verdadeira divagação burguesa.

 
Ignorar o trânsito entre teoria e prática e postular uma via de mão única é cair em um mecanicismo que combina idealismo tacanho e praticismo ordinário; no que o stalinismo é exemplar.
 

É preciso inventar a figura de um Marx 100% militante para substituir todos os anos que passou fazendo privilegiadas divagações burguesas ao vento. Sem as quais não haveria sequer a vulgata que os sectários sorvem de papinha teórica.

Nosso amigo Frederico Lambertucci explica:

Não podemos esquecer que para estes militantes leitores de cartilha de dez páginas o trabalhador tem sérias deficiências cognitivas, insuperáveis, de tal modo que é necessário vulgarizar o texto o máximo possível para que este seja acessível ao nível no qual eles põem a classe trabalhadora.

Os trabalhadores, por terem essa deficiência cognitiva, são incapazes de se apropriar da riqueza produzida pelo gênero humano, mesmo quando ela está apenas na forma de um texto que não reproduza a divisão sócio-técnica do pensamento e utilize de uma forma mais rebuscada de linguagem“.

Alguém protestou: “É incrível como se criam espantalhos pra depois fazer acusações. Aonde tem dizendo que o ‘stalinismo’ despreza a teoria?”

Ele queria uma fonte primária. Pois bem, comecemos pelos dois primeiros parágrafos do DiaMat de Stalin:

– “O materialismo dialético é a concepção filosófica do Partido marxista-leninista. Chama-se materialismo dialético, porque o seu modo de abordar os fenômenos da natureza, seu método de estudar esses fenômenos e de concebê-los, é dialético, e sua interpretação dos fenômenos da natureza, seu modo de focalizá-los, sua teoria, é materialista.

O materialismo histórico é a aplicação dos princípios do materialismo dialético ao estudo da vida social, aos fenômenos da vida da sociedade, ao estudo desta e de sua história“.

Logo de início já se vê uma linearidade entre “abordagem dos fenômenos da natureza” e “estudo da vida social”, ou, para usar o termo de Stalin, a aplicação de uma teoria da natureza sobre os fenômenos da sociedade.

O que ele reafirma pouco depois, ao dizer:

– “Ora, se o mundo é cognoscível e nossos conhecimentos sobre as leis que regem o desenvolvimento da natureza são conhecimentos verdadeiros, que têm valor de verdades objetivas, isto quer dizer que também a vida social, o desenvolvimento da sociedade são suscetíveis de serem conhecidos; e que os dados que a ciência nos proporciona sobre as leis do desenvolvimento social são dados verídicos, que têm valor de verdades objetivas“.

O que vai na contramão da sentença de Marx: “a anatomia do homem é uma chave para se conhecer a anatomia do macaco”, quer dizer, o entendimento do mais simples se pode adquirir por meio do entendimento do mais complexo. Ao contrário, se o ser social se desenvolveu a partir do ser orgânico e este do inorgânico, não será aplicando teorias da física, da química ou da biologia que nos será facultado compreender a sociedade e a subjetividade humanas, e muito menos nos dará qualquer garantia de objetividade do conhecimento.

Mais à frente, Stalin diz que

– “o enlace entre a ciência e a atividade prática, entre a teoria e a prática, sua unidade, deve ser a estrela polar que guia o Partido do proletariado.

Prossigamos. Se a natureza, a existência, o mundo material são o primário, e a consciência, o pensamento, o secundário, o derivado; se o mundo material constitui a realidade objetiva, que existe independentemente da consciência do homem, e a consciência é a imagem refletida dessa realidade objetiva, daí se deduz que a vida material da sociedade, sua existência, é também o primário, e sua vida espiritual, o secundário, o derivado; que a vida material da sociedade é a realidade objetiva, que existe independentemente da vontade dos homens, e a vida espiritual da sociedade, o reflexo dessa realidade objetiva, o reflexo do ser“.

– “Até agora, nos temos referido unicamente à origem das idéias e teorias sociais e das concepções e instituições políticas, a seu nascimento, ao fato de que a vida espiritual da sociedade é o reflexo das condições de sua vida material. No tocante à importância das idéias e teorias sociais e das concepções e instituições políticas, no tocante ao papel que desempenham na história, o materialismo histórico não apenas não nega, mas, ao contrário, salienta a importância do papel e da significação que lhes correspondem na vida e na história da sociedade“.

Mas como ele entende a unidade entre teoria e prática? Qual a importância da teoria?

– “As idéias e teorias sociais não são porém todas iguais. Há idéias e teorias velhas que já cumpriram sua missão e que servem aos interesses de forças sociais caducas. Seu papel consiste em frear o desenvolvimento da sociedade, sua marcha progressiva. E há idéias e teorias novas, avançadas, que servem aos interesses das forças de vanguarda da sociedade. O papel destas consiste em facilitar o desenvolvimento da sociedade, sua marcha progressiva, sendo sua importância tanto maior quanto maior é a exatidão com que correspondam às exigências do desenvolvimento da vida material da sociedade.

As novas idéias e teorias sociais só surgem depois que o desenvolvimento da vida material da sociedade coloca diante dela novas tarefas. Mas, depois de surgirem, convertem-se em uma força importante que facilita a execução dessas novas tarefas surgidas com o desenvolvimento da vida material da sociedade, facilitando o seu progresso. É aqui, precisamente, onde se evidencia a formidável importância organizadora, mobilizadora e transformadora das novas idéias, das novas teorias e das novas concepções políticas, das novas instituições políticas. Por isso, as novas idéias e teorias sociais surgem a rigor porque são necessárias à sociedade, porque sem seu trabalho organizador, mobilizador o transformador, seria impossível ultimar as tarefas que o desenvolvimento da vida material da sociedade faz surgir, e que já estão em tempo de ser cumpridas. E na base das novas tarefas formuladas pelo desenvolvimento da vida material da sociedade, as novas idéias e teorias sociais surgem e abrem caminho, convertem-se em patrimônio das massas populares, mobilizam e organizam estas contra as forças sociais caducas, facilitando assim a derrocada dessas forças sociais que freiam o desenvolvimento da vida material da sociedade“.

– “A força e a vitalidade do marxismo-leninismo se estribam no fato de se apoiarem numa teoria de vanguarda que reflete fielmente as exigências do desenvolvimento da vida material da sociedade e que coloca a teoria à altura que lhe corresponde e considera seu dever utilizar integralmente sua força de mobilização, de organização e de transformação“.

A princípio, não parece haver nada de errado aí. Mas a linearidade entre natureza e sociedade reaparece entre prática e teoria. Teorias que não acompanham a “marcha progressiva” da prática caducam, e novas teorias surgem para “refletir” fielmente a prática, a serviço das “forças de vanguarda”.

Stalin imagina uma teoria que reproduz “com exatidão” a prática, de acordo com as exigências desta. É assim que, de acordo com Lukács, a teoria se torna “esquematismo escolástico-dogmático no plano formal e praticista no plano do conteúdo”, donde sua relação com a prática se mostra linear ou “causal”.

Em consequência disso, Lukács diagnostica que

– “Só com Stalin é que passou a vigorar o mau costume teórico de “deduzir” toda decisão estratégica ou tática da doutrina marxista-leninista, como se fosse uma consequência logicamente necessária. Com isso, por um lado, os princípios eram mecanicamente adaptados à necessidade do momento e, assim, deformados; por outro, apagou-se a importante diferença entre leis gerais e decisões concretas, válidas apenas uma vez, deixando lugar para um dogmatismo voluntarista-praticista“.

Em suma, a teoria se torna utensílio para as conveniências de justificação do oportunismo prático. O próprio caráter tutorial dos textos de Stalin demonstra a concepção da teoria como instrumental de “aplicação” (e este é um termo profundamente revelador) na prática. E como confirmação da análise, nada melhor que ir para além do que se passava na cabeça de Stalin e avaliar a sua própria prática – o que fica pra depois, se for o caso.

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stalin 2
não está aqui quem criticou

Ciência e Religião: Diádocos da Alienação

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Tive uma colega professora de biologia que acreditava no criacionismo.

 
Bizarro? Sim, claro. Mas fácil de entender, e nem vou brincar de explicar essa ninharia de contradição.
 
Era engraçado ver o “espírito científico” dela, ao chamar de “hipótese” a existência de deus, do homem barro, da mulher costela, da cobra falante etc.
 
“Aplicar” Popper em Darwin é científico, mas não em Phil Collins e cia.
 
Deus “existe”: é comprovado – ou, para os mais pirro-cartesianos, é plausível, provável, não-contraditório (essas coisas que não dizem respeito à realidade, mas ao pensamento lógico) – pelo argumento jumentício de que é “impossível refutar a idéia de sua existência empiricamente”.
 
Em outras palavras, o saci Pererê também existe. Uma “hipótese” que resiste à falsificação não por meio de trambiques astrológicos ou ad-hocs, mas sim na medida que seu objeto é imperscrutável, ou seja, dilui toda e qualquer objetividade, e portanto toda racionalidade e possibilidade de conhecimento.
 
Sem querer, taí um porquê de biólogos poderem ser ao mesmo tempo darwinistas e criacionistas. Divisão social do trabalho incidindo sobre a subjetividade e produzindo médicos na vida pública e monstros na água benta da privada.
 
Aí chega o agnóstico, aquele que crê ser ateu, e diz: engano seu, a ciência demonstra empiricamente que deus não existe!
 
Como se um matemático, um geólogo ou um historiador investigassem o que é isso, a existência, e se preocupassem em traduzir tais coisas sob forma de equações, classificações ou interpretações chulas sobre curiosos antigos costumes (algo que a academia certifica e banca), ao contrário de assistir missa nos domingos, como todo bom cidadão de singela inocência e consciência poluída de culpa.
 
Se tem um lampejo de lucidez notável em toda essa comédia de horripilantes trevas, é o do crente – que tira o chão do idólatra da ciência ao retrucar-lhe: a ciência não responde tudo!
 
Se soubesse do que fala, diria mais: a ciência não se ocupa e nem quer saber de discutir questões ontológicas, metafísicas etc. Ela pressupõe que tais coisas já estão resolvidas. Por isso mesmo que a maioria dos cientistas não se difere muito de bêbados perdidos na sarjeta ou adoradores de desenho animado japonês.
 
É preciso dizer a ambos o seguinte:
 
Deus não é uma hipótese, deus é a síntese e a degradação abstrativada daqueles personagens folclóricos das antigas mitologias populares, o resultado do exercício de um processo intelectualista de ampliação do caráter abstrato originário daqueles (pois mesmo o mais naturalista dos deuses era um deus e não um mortal); ou seja, a conclusão da progressiva aplicação de uma inflação especulativa de suas características antropomórficas rumo à hipóstase absoluta, ao “ser” que não tem corpo, aparência, limite, que não se faz sentir, que possui vontades e pratica ações cujas razões nos são “misteriosas” e “insondáveis” etc – de modo que nada possui de tudo aquilo que define o que existe.
 
Portanto, ninguém precisa da ciência para descartar a “hipótese” da existência do Papai Noel absoluto. Vai discutir ciência no chat do UOL!
 
Por outro lado, se o ceticismo de algum rigoroso cientista o leva a pensar na possibilidade do contrário, não devemos levá-lo a sério, e sim chamar um psiquiatra.
 
Quem convoca a ciência para “demonstrar científica e empiricamente” a afirmação ou refutação de seja o que for, procura uma palavra última de absoluta certeza no terreno do que é, ao contrário disso (e para azar dos bêbados, nerds, agnósticos e economistas austríacos), pura crítica. A propósito, é por isso mesmo que a ciência jamais teria saído das cavernas se levasse Popper a sério.
 
Algum espertinho pode me jogar na cara um grave problema que sua experiência sensível apreende em minha argumentação: por que você diz que a ciência empírica não pode afirmar certezas, enquanto sua ontologia autoritária pode?
 
Eu não disse que a ciência empírica não pode afirmar certezas, eu disse que ela não tem o que dizer sobre o que é âmbito da ontologia.
 
E quando a ciência acerta, muito pouco de seu mérito deve se atribuir ao seu empirismo. Ao contrário, a experiência sensível – sobre a qual a ciência empírica, apesar das crenças fisolóficas e epistemo-burguesas dos cientistas, NÃO se baseia – é uma fonte inesgotável de erros e ilusões. O geocentrismo é perfeitamente empírico: basta lançar os olhos ao céu – é ver pra crer, não é assim? – para constatar a sua “verdade”, enquanto o heliocentrismo é a negação da empiria.
 
Enquanto isso, a ontologia se fundamenta na prática, na lida cotidiana dos indivíduos uns com os outros, incluindo os céticos mais empedernidos e os teoricistas mais alienados (sempre bem dispostos a imaginar a prática isolada da teoria e vice-versa), e todos com a natureza – portanto, exatamente com tudo aquilo que chamamos de realidade e que pensamos ser um âmbito da obviedade, mas que possui camadas e mais camadas de efetivas determinações quase que totalmente despercebidas pela nossa experiência sensível (e é exatamente por isso que o academicismo enxerga nele os mesmos insondáveis mistérios que motivam deus a ser um misericordioso sádico etc., donde o ceticismo se tornar uma tara agarrada no tecido adiposo cerebral do subjetivíssimo empirista, uma idéia fixa que rivotril nenhum retira e nem própolis na língua resolve). Significa que a ontologia se constitui na dimensão daquilo que exige e tece o que chamamos de razão: compreensão das coisas tais como elas são – e isso é uma questão de sobrevivência do nosso próprio corpo -, e não das coisas tais como a nossa miopia pinta em nossas cabeças.
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2 igual a 1
Ah, a ironia…