Protagonismo e vivência

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Quando o assunto de um debate é FEMINISMO, movimento NEGRO, movimento LGBT ou gira em torno de outros grupos de luta pró-minorias, por vezes a posição e o pensamento discordante (ou não!) de um sujeito – que simpatiza com a causa em questão e a ela se dispõe a somar forças, mas cuja própria individualidade não é identificável cultural, social, sexual, fenomênica ou até mesmo biologicamente (?) com as pessoas que “naturalmente” integram o movimento – são frequentemente desclassificadas e descartadas por meio da desqualificação do próprio sujeito.
 
Quando ainda no nível da argumentação, diz-se que tal indivíduo pretende assumir um protagonismo que lhe é ilegítimo, por não possuir a vivência que os autênticos membros sofreram ou sofrem cotidianamente. A centralidade de tais noções em um discurso, seja quem forem os discursantes, evidencia seu caráter subjetivista.
 
No nível da brutalidade e desonestidade completas, tacha-se um rótulo que decalca no sujeito a figura do “inimigo do movimento” (quando não um hitlerista). Assim, os demais debatedores e leitores não só se dispensam de responder o conteúdo do discurso – pois quem o proferiu foi tornado desprovido de legitimidade, autoridade e, por vezes, capacidade cognitiva ou moral para falar qualquer coisa, ainda que possua razão (de modo tal que sequer precisam continuar a distorcer suas palavras para dar a elas uma aparência de descrédito próprio) -, mas criam também, do ponto de vista gregário, um entretenimento útil e auspicioso, não importa o quão superficial, imediatista e efêmero, para unir a multidão em torno da malhação do “desafeto comum”. É tal como acontece numa torcida de futebol, numa congregação de religiosos, no engajamento em propostas e personas políticas ou também num linchamento de um suposto bandido. Coisas que, ou pessoas com quem, não se discute.
 
Antes de prosseguir, peço que não me acusem de comparar a esculhambação de alguém num debate com o ato de triturar uma pessoa na rua. “Linchamento virtual” é uma expressão mais que ridícula e infame, é puro e pleno desprezo para com todos aqueles que sofreram tamanha injustiça e violência na própria carne. O que pretendo é chamar a atenção para o procedimento aglutinador de bárbaros por meio da manipulação de um mecanismo psicológico chamado “fé” – aquele que angaria adesão tão irracional quanto afetiva e, portanto, disposição à bestialidade.
 
Mas o que me interessa aqui não é falar dos golpes baixos. Interessa discutir a primeira forma de censura, pois ela tem um apelo estético tão sedutor que até parece racional; por isso, convence e arregimenta um bocado de gente de boas intenções.
 
Por que estético? Porque basta imaginar um sujeito branco se colocando como ativista do movimento negro, ou um homem atuando com interesse e disposição propositivos em um grupo feminista, que a ilegitimidade de tais imagens imediatamente é colada em nossos olhos, em nossa pele e sensivelmente em nosso afeto, tamanha a aparência de sua obviedade.
 
Mas os sentidos às vezes nos enganam e o que parece ser óbvio pode não passar de mera ilusão.
 
Em primeiro lugar, é estranho que haja o receio de que alguém “roube o protagonismo” dos “legítimos integrantes” do movimento. Ora, onde está a bandeira da luta pelo reconhecimento do grupo? Se diluiu na disputa da maior medida de importância dos indivíduos? Numa competição pela atenção dos demais? Ou num certame de levantamento de egos?
 
De onde pode surgir a idéia de que alguém adere a uma causa de tamanha dureza interessado em se sobressair frente aos demais? Mas se o termo “protagonista” quiser designar um indivíduo que se lança à linha de frente das batalhas – sem qualquer vaidade de si ou inveja dos companheiros -, tanto pior, pois a rejeição de tal disposição (nem sempre verificável nas pessoas, portanto valorosa) indica um egoísmo ainda mais mesquinho.
 
(Nessas horas, se coloca a questão do protagonismo na luta pelos direitos dos animais, que bem combina com a sua denúncia do “especismo”: seres humanos falando pelos animais e contra si próprios [cf. o texto O anti-humanismo da crítica ao “Especismo”]).
 
Se esta questão do protagonismo é preocupação que assedia com afinco um movimento qualquer, me parece que em apenas um único sentido ela pode ser genuína: protagonismo enquanto função ou cargo de representação do movimento, como no caso dos indivíduos aos quais se delegam as tarefas de comunicação, de liderança (basta lembrar a presidente do “movimento afro do PSDB”) etc.
 
Mas não é este o sentido do termo que é usado nos debates, e sim aqueles anteriores. Donde o que era pra ser um movimento de luta se perde na inconsistência da egolatria e revela sua fraqueza de meios e propósitos.
 
Ao extremo, mas se atendo ao âmbito dos pensamentos, a recusa da participação de um indivíduo “estranho” é afirmada inclusive para situações práticas em que qualquer pessoa deveria na verdade agir, sob pena de sofrer censura por não fazê-lo. Para citar um exemplo mais ou menos recorrente: certo entendimento que circula (não sei com que grau de adesão) entre as feministas afirma que apenas mulheres podem oferecer ajuda ou defender uma mulher, pois os homens – todos eles – são opressores e serão machistas mesmo se quiserem prestar qualquer auxílio ou socorro, porque isso é manifestação de paternalismo, pretensão de superioridade, subestimação da mulher etc.
 
Tudo isso, repito, se restringe ao puro pensamento, pois no âmbito da vida real, prática e cotidiana, não existe “a mulher” e nem “os homens”. Existe a Maria, existe o João e o José, existe o indivíduo que se distingue de todos os outros por ser ele uma síntese única de muitíssimos atributos, não importa quais e quão comuns sejam. Aliás, quantos atributos possuem em comum a moradora da mansão em bairro nobre e a moradora de rua, além de serem mulheres, falarem “dialetos” socialmente distintos mas intercompreensíveis de uma mesma língua – como acontece com todas as que existem -, e uns outros mais? Quão fundamentais são os atributos que ambas possuem frente aos que não compartilham? O que determina a importância de um ou tantos em um momento, e de outros noutra situação?
 
Portanto, é perfeitamente concebível a idéia de um fulano qualquer, homem, machista inclusive, se deparar repentinamente com uma circunstância envolvendo violência física ou verbal de um homem (ou um outro animal) contra uma mulher e agir para defendê-la, caso ela esteja em desvantagem. Se não o faz, mas permanece indiferente, é cúmplice da covardia do agressor. E por qual razão deveria ela recusar sua ajuda?
 
Há homens machistas e há homens que recusam o machismo, assim como há mulheres de luta e há mulheres não apenas submissas ao machismo, mas que chegam ainda a defendê-lo. A questão do protagonismo deve levar isso em conta, se a intenção não for criar um dogma – e nada melhor que isso para minar o empoderamento de alguém.
 
Aliás, tais noções de protagonismo não são problema a se considerar quando o movimento é coeso, forte e consistente prática e teoricamente. Qualquer prática que aponte para rebaixamentos egóicos pode ser facilmente detectado e desmantelado.
 
E mais: como combater o machismo sem envolver os homens e angariar suas adesões? Não se trata de conseguir fazer o machista combater o machismo?
 
Ou a luta é pela afirmação da mulher enquanto diferença intransitiva frente aos homens? Eles não responderiam: “ora, o machismo afirma exatamente isso, podem largar as bandeiras e assumir a cozinha”?
 
A luta não visa estabelecer uma posição autenticamente humana da mulher na totalidade da sociedade? Ou seja, pela igualdade de direitos entre os diversos indivíduos (é assim que se costuma justificar a luta, mas sem muito rigor, já que a igualdade é uma forma de abstrair até mesmo os atributos cujas diferenças são o cerne de toda a questão)?
 
Se é assim, cabe compreender e reconhecer o significado profundamente humanista do feminismo.
 
Protagonismo não é, pois, um problema, mas sim uma necessidade. É o indivíduo “empoderado” que participa das ações e reflexões, que levanta propostas e incentiva a atuação autônoma e responsável, que age no sentido de fortalecer o movimento de forma honesta para consigo mesmo e os demais, que se dedica à causa e se mostra confiante nos companheiros de luta.
 
Não há porque recusar o protagonismo dos interessados na luta, e muito menos exigir o aval de alguém que efetivamente sofre preconceito e violência. Na verdade, se um indivíduo reconhece o sofrimento dos grupos oprimidos, por que não deveria se sentir na obrigação de atuar em prol de seus direitos? Por que não deveríamos esperar justamente isso de sua parte?
 
Alguém pode estar pensando: finalmente a questão da vivência apareceu, mas como ela entra nisso aí?
 
Vivência é coisa do âmbito privado do indivíduo singular. Entretanto, o que importa é o que há de comum, socialmente determinado, nas vivências de cada indivíduo; e só isso confere importância à vivência.
 
Assim, um negro que sofreu uma afronta racista sabe suficientemente bem qual é a dor de outro negro que lhe conta ter ouvido uma ofensa semelhante, ainda que não seja a mesma coisa, a mesma circunstância, a mesma dor e a mesma reação.
 
Um branco não sabe o que é racismo. Mas sabe o que é ofensa e o que é dor. Se isso lhe basta para aderir ao combate, por que exigir-lhe mais?
 
Insistir na centralidade da vivência é desprezar aquilo que une os indivíduos singulares em torno de uma compreensão e uma causa comuns e atirar tudo para o abismo da singularidade isolada: a vivência é minha, e sequer a linguagem pode te fazer compreendê-la. Ora, o que esperar disso? Um embate na arena política dos direitos? Não, porque cada indivíduo – encerrado em sua vivência única e intransponível umbigo afora – possui algo que a mais ninguém serve de critério e é impossível de ser avaliado. Sem contar que as vivências de um mesmo sujeito podem ser contraditórias entre si, e outros problemas.
 
Aí só resta medir força física bruta contra quem afirmar uma vivência contrária. Basta pensar, por exemplo, no sujeito que defende a redução da maioridade penal alegando que um menor matou um parente querido – uma vivência tão dolorosa e comovente quanto universal e politicamente efetiva, à qual todos estão sujeitos. Mas em que medida o sofrimento torna justa uma reivindicação? Este caso mostra que a dor pode tornar obscuro o entendimento, muito antes de legitimar idéias e ações.
 
Para terminar, uma provocação. Não é interessante notar que esses problemas nunca surgem entre os sem-terra, sem-teto, sem-comida etc.? Se houver adesão às suas lutas por parte de quem tem teto, comida e até mesmo um sitiozinho no interior, tanto melhor. Seus movimentos estão atentos para questões de outra grandeza e importância.
 
A luta contra a opressão de uma parte da humanidade por outra é uma luta que concerne a toda a humanidade, e aí o que importa não é promover expurgos, mas angariar aliados.
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O indivíduo em luta - na literatura clássica, moderna e pós-moderna

Capitalistas malvados e o ódio entre as classes

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É recorrente a acusação jocosa contra o marxismo de promover ódio entre as classes e taxar os empresários de malvados.

O tanto que essa difamação tem de ignorância já começa no fato de admitir e aceitar, sem a menor problematização, a existência de classes, que não é outra coisa que justamente o foco da crítica de Marx.

Seu modus operandi é o mesmo do mais simplório moralismo: primeiro, ela abstrai o indivíduo da sociedade; assim, ao torná-lo entidade auto-sustentada, isolada e independente de tudo mais, conclui: o empresário é apenas alguém que se deu bem, e a crítica ao capitalismo é pura inveja de quem não se esforçou [sobre isso, confira o texto: Inveja esquerdista contra os bem-sucedidos?].

Mas o marxismo percebe que os indivíduos situados na classe dominante, além de não terem escolhido nascer enquanto tais, devem jogar o jogo que o capital põe para eles, sob pena de quebrarem, ou seja, falirem. Desse modo, eles estão também subjugados ao capital, como todos os demais.

Da alienação do indivíduo capitalista, Marx disse: “seu gozo é apenas coisa secundária, repouso, gozo subordinado à produção e, portanto, mais calculado, e mesmo mais econômico, pois o capitalista soma seu gozo aos custos do capital e, por isso, aquele deve custar-lhe apenas uma quantia tal que o que foi esbanjado seja restituído pela reprodução do capital mais o lucro. O gozo é subordinado ao capital e o indivíduo que goza é subordinado àquele que capitaliza, enquanto antes sucedia o contrário” (MEF).

Por conta disso, adquirem traços morais próprios de quem conta centavos. É a vida que levam e a “profissão” que exercem que demandam tal caráter. 

Então, o indivíduo capitalista é moralmente repulsivo? Sim. Mas o alvo do marxismo não é o indivíduo, e sim as classes sociais que, ao lado da divisão social do trabalho, o determinam; e tem em vista justamente emancipar o indivíduo delas, inclusive os burgueses, cuja alienação – submissão ao mercado – é sem dúvida menos embrutecedora que a que se manifesta na classe pequeno-burguesa e na classe trabalhadora; entretanto, nem por isso deixa de sê-lo também.

Ao contrário do que ocorre no marxismo, é na própria ciência econômica burguesa que mais se vê moralismo. Sobre isso, diz Marx:

A economia política, esta ciência da riqueza, é assim também a ciência da renúncia, da privação, da poupança, e chega realmente a poupar ao homem a necessidade de ar puro e movimento físico. Esta ciência da maravilhosa indústria é ao mesmo tempo a ciência do ascetismo, e seu verdadeiro ideal é o avaro ascético, mas usurário, e o escravo ascético, mas produtivo. Seu ideal moral é o trabalhador que leva à caixa econômica uma parte de seu salário. Por isso, a economia política, apesar de sua aparência mundana e prazerosa, é uma verdadeira ciência moral. A mais moral das ciências. A auto-renúncia, a renúncia à vida e a todo carecimento humano é seu dogma fundamental. Quanto menos comas e bebas, quanto menos livros compres, quanto menos vás ao teatro, ao baile, à taverna, quanto menos penses, ames, teorizes, cantes, pintes, esgrimes etc., tanto mais poupas, tanto maior se torna teu tesouro, que nem traças nem poeira devoram, teu capital. Quanto menos és, quanto menos exteriorizas tua vida, tanto mais tens, tanto maior é tua vida alienada e tanto mais armazenas da tua essência estranha. Tudo  o que o economista tira-te em vida e em humanidade, tudo isso ele te restitui em dinheiro e riqueza, e tudo o que não podes, pode-o teu dinheiro. Ele pode comer, beber, e ir ao teatro e ao baile; conhece a arte, a erudição, as curiosidades históricas, o poder político; pode viajar, pode fazer-te dono de tudo isto, pode comprar tudo isto; é a verdadeira fortuna. Mas sendo tudo isto, o dinheiro não pode mais que criar-se a si mesmo, comprar-se a si mesmo, pois tudo o mais é seu escravo, e quando eu tenho o senhor, tenho o servo e não preciso dele. Todas as paixões e toda atividade devem, pois, se afundar na avareza. O trabalhador só deve ter o suficiente para viver e só deve querer viver para ter” (MEF).

A questão moral está absolutamente fora de questão para o marxismo – que, muito antes de pregar qualquer discórdia entre ricos e pobres, apenas a constata, e ainda a explica. Comunistas não precisam promovê-la, ela já estava aí bem antes.

Mas o mesmo mecanismo de pensamento abstrato leva o acusador antimarxista a crer que a luta de classes “não existe”, “não passa de um bando de petistas e antipetistas se atracando na rua” ou “é invenção do PT para desunir o povo” (linda palavra essa, “o povo”, no interior da qual as diferenças entre um acionista de uma corporação multinacional e o seu Ninguém “morador de rua” desaparecem!). Acontece que a expressão “luta de classes” não surgiu da cabeça de Zé Dirceu ou da de Marx. Ela surgiu na França dos tempos da revolução burguesa, e traduz um fenômeno perfeitamente empírico: a relação inversa entre lucro e salário, donde o antagonismo – radicado na própria essência da sociabilidade – entre os interesses da classe trabalhadora e classe burguesa. Que isso possa tomar as mais diversas formas, incluindo violência e todo tipo de ódios, é apenas uma consequência trivial.

Mas não espere que um moralista entenda qualquer coisa sobre classes sociais: porque isto está para muito além do que a avareza de seus olhos o permitem enxergar.

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luta de classes não existe - seu favelado burro
Para quê responder a mensagem, se eu posso desclassificar o mensageiro?

O anti-humanismo da crítica ao “Especismo”

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O veganismo diz que comer carne é especismo.
 
Trata-se, com o perdão do trocadilho, de uma espécie de antropocentrismo.
 
Os veganos criticam aqueles a quem chamam de especistas por estes julgarem ser o homem superior às outras espécies, a ponto de pretender tomar e realizar decisões que as envolvam, etc.
 
Especismo é isso: se afirmar enquanto pertencente a uma espécie superior. E isso vale tanto para quem come carne quanto para quem tem um gato pra alimentar.
 
Donde o vegano idealizar um mundo humano totalmente afastado e isolado dos animais. Hein?
 
O pequeno detalhe que parece escapar aos veganos é que, ao se colocarem em defesa dos animais, estão se colocando como superiores a eles (e a quem não for vegano, claro). Pois os bichos carecem de um representante e defensor da causa animal, e este é o vegano, imbuído das tarefas que foram delegadas a ele por ele mesmo, já que animais não são capazes de outorgar tal autoridade.
 
A bem da verdade, o veganismo luta contra uma evidência tão luminosa que os próprios animais conseguem percebê-la, com exceção dos gatos. Os cães que o digam…
 

Portanto, a crítica ao especismo não é crítica, é apenas uma confissão de pequenez que o indivíduo vegano projeta sobre os outros – e não é outra coisa que leva um Schopenhauer a destilar seu desprezo à própria humanidade. Mas, se veganos e filósofos irracionalistas não são ou não se sentem superiores a uma barata, por que afinal crêem que os outros devam concordar com isso? Que vão plantar batatas.

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vegan iludido edt

Humanização para além da ciência

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Alguém respondeu meu texto sobre ciência e arte [aqui] dizendo que “ciência é a desantropomorfização do próprio humano”.
 
Exatamente. E, ao contrário do que sugere, desantropomorfização é humanização.
 
Porque a ciência traz “para nós” aquilo que é “por si”. Traduzindo, a ciência permite a ampliação do domínio humano sobre uma parcela da realidade até então alheia a nós e existindo sem qualquer relação conosco, ou sem que nos déssemos conta da relação que houver.
 
A desantropomorfização do homem é a humanização da natureza, tanto a que se refere ao próprio corpo e subjetividade humanos, quanto a natureza exterior ao corpo, na qual o humano se ambienta, tornada mundo.
 
É claro que aquela expansão do poder humano não depende apenas da ciência, mas também da ação prática, do estágio de maturidade social da cognição do sujeito e também da maturação natural e/ou social do objeto. Nem todo objeto está, em si ou por si mesmo, pronto ou disponível para ser conhecido e transformado, ainda que esteja posto diante nossos narizes e nos relacionemos com ele na trivialidade do cotidiano. E nem sempre a história e a sociedade permitem ao sujeito ultrapassar os limites que elas mesmas põem a ele.
 
São coisas que só o tempo nos permite ver com clareza. Porém, o principal domínio da realidade a ser humanizado não é natureza, e não apenas tem total relação conosco, mas se impõe a nós: a sociabilidade mundial humana, ou seja, as condições universais da formação social da mais singular individualidade.
 
Ciência para isso nós temos mais que o suficiente. Mas, ao inverso de nos encontrarmos mais capazes e próximos de humanizar a sociedade, estamos nos afastando desse dever – absolutamente imperioso, necessário e importante, abarrotado de sentido e valor – em alta velocidade e na disritmia de aviltante aceleração, perigosamente desorientados e sordidamente enfraquecidos, rumo ao pleno humanicídio ou à completa torpeza de uma deterioração total da humanidade ao patamar da selvageria. Qualquer avaliação sobre o que seria pior é problemática.
 
Os que herdarão o mundo – nossos filhos, netos, bisnetos – hão de fruir um legado de privação e desamparo, de medo e tensão, desgraças e muita dor, caso a humanidade siga a atual vida encoleirada a serviço da propriedade privada capitalista. As evidências da decadência do gênero humano são tão saturadas quanto um samba de tamanco salto fino em cima de nossas córneas. Somos obrigados a testemunhar grande parcela da população global ignorando a questão ou se lixando pra ela e, para nosso desgosto maior, ainda sentimos nos tímpanos a gritaria de uma massiva horda de bárbaros em defesa da situação vigente.
 
Por isso mesmo é que uma sociedade e individualidade autenticamente humanas, apuradas em todos os sentidos, gozando de riqueza de corpo e alma, pensamento e ação multifacetados, materialidade e espiritualidade verdadeiramente refinadas e integralmente conciliadas – demanda urgentemente uma revolução social radical, dolorosa, ampla, profunda, morosa e duradoura. A mais difícil tarefa já posta ao homem em toda a sua história e, por isso mesmo, a mais valorosa. Quem renuncia a ela, renuncia a si mesmo e apodrece por baixo da própria carniça; saboreia o cultivo do miasma que preenche sua consciência e a metástase da muxiba que convulsiona em seu peito. Não nos permitamos viver sob o jugo de tais cadáveres insepultos e engravatados.
 
Em suma: a ciência nos humaniza. Mas a humanização do indivíduo, do mundo e da própria ciência não é uma tarefa científica. Trabalhadores de todo mundo, uni-vos!
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la revolucion es ahora
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