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Alguém me apareceu com o surrado “argumento ontológico” de Descartes pra me provar a existência de deus.
Bravo! Eis aí uma forma de discutir sem apelar para as tolices subjetivistas do “para mim”, “minha fé”, “minha vivência” e demais variações.
Diz Descartes que a idéia de um ser perfeito tem como causa um ser perfeito, deus. E que a existência da idéia de deus é exterior a nós, posta em nós, porque esta idéia não pode ser produzida por nós. Por fim, a idéia de um ser perfeito implicava na existência deste ser, pois do contrário não seria a idéia de um ser perfeito; ou seja, a idéia da perfeição implica necessariamente na existência da perfeição, pois se não existisse, a perfeição não seria perfeita.
Muitos foram os filósofos que perceberam que Descartes acreditava tanto em seu argumento fajuto, uma reelaboração do igualmente fajuto “argumento ontológico” medieval, que só o usou em sua metafísica com fins a não queimar na fogueira, enquanto em sua física não falava de deus e nem o pressupunha pra nada. Mas vamos deixar essa suposição de lado e nos ater ao argumento.
1) A idéia de um ser não implica necessariamente na existência desse ser. Basta pensar em um minotauro, p.ex. Mas a idéia da perfeição não seria uma idéia normal. Pois ela não implica necessariamente na existência da perfeição, de modo que o conceito não seja contraditório? Ora, e desde quando há idéias especiais que, em seu conteúdo ideal e abstrato, garantem a existência concreta de algo para além delas mesmas? A perfeição é uma idéia e apenas isso, e enquanto tal não implica na necessária existência de um ser que seria perfeito.
2) A idéia da perfeição nos é facilmente produzida por uma abstração, uma operação intelectual simples, simplesmente inflacionando o que pensamos ser bom, razoável, adequado etc. Basta imaginar: “e se fosse melhor? E ainda melhor? E mais ainda?” até chegar a um ponto em que já não há o que pensar, senão um nome, a idéia vazia de um “melhor último” e rotular esta idéia com o termo “perfeição”. Eis aí o deus!
3) Portanto, a existência de deus é absolutamente desnecessária para se pensar a idéia de perfeição. Ao contrário, por ser ele também uma idéia a que se chega especulativamente, é o pensamento que instaura a sua existência – ENQUANTO IDÉIA. Não existe deus para além da imaginação dos homens, e é lá onde existe igualmente o “reino dos céus”, um reino localizado na memória das ficções fantasiosas elaboradas pela mente humana.
A bem da verdade, como dito no ponto 2, “deus”, “perfeição” e demais hipóstases sequer podem ser chamadas de idéias, mas apenas nomes vazios.
Nada que existe é perfeito, por essência; pois tudo que existe, existe no tempo e em meio a outras coisas e graças a elas. A Natureza não é perfeita. Mas nós criamos a noção de perfeição, assim como outras tantas coisas que produzimos na imaginação, a partir da especulação da consciência que reflete a si mesma, e as desejamos como também o infinito. Anseios de quem sabe que um dia morrerá e até mesmo o universo terá fim. Mas isso fica para outro texto.
Descolado esse Descartes da imagem ao fim!
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se a palavra perfeição fora criada por nós e não foi identificada no mundo real, fica claro ai a falaciosidade da teoria visto que uma coisa n pode ser real se é caracterizada por algo que só existe em nossa imaginação.
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De fato, qual palavra não foi criada por nós? Se ela corresponde a algo real ou não, é a questão. E não é isso que digo no texto?
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quando disse palavra pensava em ideia, mas como vc disse que perfeição não é ideia…
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vc tem que aprovar os comentarios primeiro?
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Sim. Medida prudente em um blog com esse conteúdo, não acha? Abraços.
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perfeito
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Muito bom camarada, continue!
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Obrigado! Confira o índice à esquerda, talvez haja um título que pareça ser interessante também 🙂
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Descartes cita, na segunda meditação, sobre a imagem mental de criaturas mitológicas, tais como o sátiro e as sereias, chegando a conclusão de que tudo que é concebido parte de algo existente antes (primazia ontológica). O minotauro, apesar de não existir, baseia-se na mistura de dois seres que existem de fato. Ou seja, ideias conservam um “quê” de realidade.
Ele também faz a ressalva de que nem toda idéia venha necessariamente a implicar na existência daquilo é idealizado. É patente, na terceira meditação, que existem ideias (enquanto meros produtos da imaginação) e ideias(enquanto representantes dos graus de perfeição do ser, dotado de “realidade objetiva”, sendo efeito de uma causa não menos real, etc). E perfeição, pelo que pude notar de minha leitura das Meditações, não é tomada como uma “ideia” (no sentido cartesiano). Pelo que pude depreender, perfeição é um estado que contempla as múltiplas características (atuais ou potenciais) de um objeto. Se você mostrar o excerto daquilo que ele entende como perfeição, ficaria agradecido.
Porém, o francês idealista força a barra ao não abrir mão do princípio da identidade. No exemplo do pedaço de cera, ele diz que a cera se mantém cera em sua forma, extensão, APESAR dela passar por inúmeros processos de transformação, inclusive químicos; ou quando ele fala, na terceira meditação, que se sua vida fosse dividida em inúmeros e pequeninos instantes, cada um TOTALMENTE INDEPENDENTE DO OUTRO, não manteria a sua coesão existencial se não fosse pela ação contínua de Deus, sustentando-o. Pegou pesado, convenhamos
Agora Erik, como leitor do seu blog, gostaria de fazer uma pergunta a vc, ateu e marxista:
Como você dirime o problema das relações de causalidade infinita quanto ao surgimento da Natureza? Vc concebe algo como o primeiro motor aristotélico?
No aguardo por sua resposta e grato pela atenção!
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Olá TBC, grato pelo comentário e por acompanhar o blog.
Ótimas observações sobre Descartes. Mais tarde volto com a perfeição 🙂
Não concebo nenhum “primeiro motor”. A questão das relações de causalidade que se perdem no infinito é uma fronteira da razão. Por isso, quanto ao surgimento da Natureza, tudo que temos é apenas especulação. Note que as tais “relações de causalidade infinita” não passam de um oxímoro. O infinito nada é, na medida que pressupõe a dissolução categorial do espaço-tempo; portanto, também de toda causalidade.
Relações de causalidade são temporais. E como é que fica, então?
Eu me satisfaço em pensar que a Natureza – ou melhor, a matéria – não surgiu; e que ter sempre existido não significa infinitude ou eternidade. Porque o tempo é determinação da matéria. O tempo não pode ter surgido porque o surgimento é uma categoria temporal; qualquer coisa que surge, surge em um momento, portanto pressupõe o tempo.
Infinito e eternidade, por outro lado, são as antíteses do espaço e do tempo: lugar absoluto em instante parmenídico. Disso, nada poderia vir a ser, nenhuma relação se estabeleceria.
Dizer que há um passado que se estenderia ao infinito é apenas dizer que não há muito o que, e como, se pensar o assunto. “Resolver” o problema através de uma “causa sui” é apenas dizer: “até aqui, a causalidade me foi útil, agora eu a abandono para chegar na solução”. Mas isso é apenas um sofisma bem mequetrefe. Não é à tôa que, a partir disso, a razão tem de dar lugar à fé.
Abração!
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