A doutrina do “Partido Sem Escola”

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Hoje um aluno meu escreveu em sua prova: “Escola Sem Partido já”.

Eu não sei o que leva alguém que é a favor da escola privada estudar em uma escola pública; mas estou certo que este caso mostra que às vezes a melhor escolha é afrontar a própria opinião – em prol de uma educação de qualidade e do abandono de preconceitos pueris comprados na esquina.

Entretanto, já nos encontramos no final do semestre e ainda vemos que certas opiniões insistem em se agarrar ao cérebro, tais como vampiros que se alimentam dos mais teimosos afetos.

 

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O que é, pois, a “Escola Sem Partido”?

Ao contrário do que diz ser, a “Escola Sem Partido” tem partido, sim: o “Partido Sem Escola”.

Trata-se de um projeto que consta do programa político do partido do presidente recém-eleito e de seus partidos aliados.

Portanto, a “Escola Sem Partido” não só tem partido, como tem mais de um.

 

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A “Escola Sem Partido” diz pretender combater o que identifica como “doutrinação” de alunos por professores.

Essa “doutrinação” é possível e acontece porque os alunos são passivos e vulneráveis.

Tal “doutrinação” é própria do que classificam, de acordo com parâmetros peculiaríssimos, como “pensamento marxista”.

O marxismo não possui a imparcialidade que a educação, dizem, deveria almejar; e, assim, é passível de ser caracterizado como “doutrina ideológica”.

Além disso, o marxismo quer “destruir a família” transformando as crianças em estéreis homossexuais através de sua “ideologia de gênero”. Os honrados varões da “Escola Sem Partido” temem que “se todos se tornarem gays, não haverá mais humanidade”. O que é mesmo que temem?

A “doutrinação marxista”, por fim, é culturalmente disseminada, de modo que há uma parcela enorme de professores marxistas nas escolas.

 

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Em primeiro lugar, é notável o uso pejorativo do termo “doutrinação” pelos partidários da “Escola Sem Partido”: pois ao seu redor gravitam pessoas e instituições que tomam partido de bandeiras religiosas.

Donde a “doutrinação” que combatem é apenas aquela que divergir da “verdadeira doutrina”. Como na religião, as teologias alheias são apenas formas de idolatria satânica e ignorância da verdadeira Verdade.

Doutrinação da Verdade “de verdade”, somente a dos partidários da “Escola Sem Partido”; do contrário, temos doutrinação “ideológica”, “marxista”, “parcial”.

Mas em que medida pode existir uma pura imparcialidade, um puro desinteresse social e político no saber? Em que medida essa suposta neutralidade social e política, ela sim, não seria apenas uma ficção para uso doutrinário e abuso político?

De forma ingênua ou, ao contrário, maliciosa, trata-se de fazer alguém acreditar que a proposta não possui “qualquer espécie de vinculação política, ideológica ou partidária”; como quem pretende que suas “idéias” ou, em termos mais concretos, seu posicionamento político, ideológico e doutrinário se situe acima das questões em debate na sociedade, acima dos conflitos e das lutas, acima dos antagonismos de interesses que estão postos pela própria situação dos indivíduos na relação social travada em torno da reprodução da sociedade.

Trata-se de nos fazer acreditar que seu discurso não seja ideológico, quando na verdade o é totalmente; que não seja político, quando o é integralmente; que não seja partidário, quando, mesmo que não estivesse (mas está) vinculado a nenhum partido específico, toma partido nas questões sociais.

Ao contrário dessa proposta de nivelamento do pensamento, aquele que toma partido de uma posição político-ideológica (o que não é o mesmo que vender o peixe de um partido político) se põe a participar de um debate, onde coloca argumentações, faz e ouve críticas.

Impedir que o professor tome partido é pretender um educador que não assume o que pensa e se coloca sobre o muro a respeito de questões que exigem uma posição, inclusive por uma questão moral.

Ou será realmente imparcial, desejável, saudável e ética a posição que se pretenda neutra frente ao fato histórico da escravidão no Brasil?

 

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A escola é lugar da filosofia e da ciência e, portanto, da pluralidade de idéias e de seu confronto, por meio do debate, da argumentação e da crítica. Doutrinação, ao contrário, é o que se faz na religião; e aí, não apenas nada se discute, mas se deve aceitar sem contestações e protestos a doutrina mais parcial possível, ainda que se afirme universal.

Se observarmos o que de fato ocorre nas escolas, fica fácil de perceber que professores que criticam e/ou deturpam Marx, o socialismo, o comunismo e demais alvos da “anti-doutrinação” não estão na exceção, mas são sim a regra, enquanto defendem a ideologia do empreendedorismo da venda de balas no sinal em direção ao futuro e certeiro cargo de executivo numa multinacional.

Além disso, principalmente as escolas “livres” – ou seja, privadas – sempre tomaram partido político, ideológico e religioso; enquanto as escolas públicas, principal alvo dos partidários da “Escola Sem Partido”, são laicas e prezam pela diversidade.

Ora, a “Escola Sem Partido” não apenas age politicamente em prol da doutrinação religiosa de professores e alunos, mas também toma partido pela privatização da educação.

 

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E os alunos?

E se “nossos intocáveis filhos” quiserem entrar para o PT? Ou para uma religião qualquer? Ou ter “orgulho” de serem brancos, brasileiros, héteros etc. (coisas nas quais a persistência certamente exige muito esforço)?

Ora, não cabe a ninguém bancar o paradoxal “anti-doutrinador” que lhes descerá goelas abaixo uma “doutrina da emancipação”. Que sigam o que lhes der na telha e errem por conta própria, pois nada pode ser mais contrário ao aprendizado e ao exercício de alguma liberdade e autonomia que esse discurso da “defesa de meu filho”.

A idéia de que haja ou possa haver essa tal “doutrinação” dos alunos por parte dos professores pressupõe

  1. que os alunos recebam passivamente aquilo que os professores dizem em aula, como numa espécie de “lavagem cerebral” em laboratório, o que só existe em ficções das mais tolas;
  2. que o próprio mundo humano não esteja permeado por idéias políticas, vindas de todos os lugares, e bem mais dos meios de comunicação (incluindo blogs, whatsapp, youtube etc.) do que da escola (mas quem proíbe os filhos de assistir à TV, acessar a internet e sair do quarto?);
  3. que o caráter político e ideológico dos assuntos que um professor aborda em sala de aula seja necessariamente danoso à formação cidadã do aluno;
  4. que tal caráter político e ideológico não esteja presente também na metodologia de ensino, e que haja assuntos, áreas e conteúdos ideológica e politicamente neutros.

 

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Ao contrário do que reza a “Escola Sem Partido”, ser “doutrinado” por uma ideologia ou muitas, bem como pela crítica às ideologias, não apenas é inevitável, como também faz parte da formação para a vida em sociedade.

“Defender” o filho contra as ideologias é pretender afastá-lo do próprio mundo, encerrando-o numa bolha contra tudo que o mundo lhe traz, o tempo todo, de ideologias e informações.

Isso sim é deletério. Não é meio de defender ninguém, mas sim de promover o atrofiamento de todos os aspectos de um indivíduo.

O desenvolvimento de uma consciência crítica não passa por se colocar à distância das ideologias, mas pelo saber que elas existem, porquê elas estão aí e o que elas dizem, para que o indivíduo possa formar uma posição própria a respeito delas. E isso vai acontecer de um jeito ou de outro, independente das intenções doutrinárias dos pais e dos professores.

Não devemos “respeitar” o conteúdo de uma ideologia, como se isso fosse o mesmo que respeitar o indivíduo que as abraça. Tudo pode e deve ser colocado em discussão. E nesse processo, por vezes mais lento e contraditório que gostaríamos que fosse, o indivíduo vai lapidar o seu próprio posicionamento. Tal como estamos fazendo neste exato instante, e ao longo de nossas vidas, sempre.

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A verdadeira doutrina é somente a do “Partido Sem Escola”

 

 

Djamila Ribeiro: uma definição institucionalista e anti-histórica do racismo

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Djamila Ribeiro nega a existência do “racismo reverso” afirmando o segte.:

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– “Racismo é um sistema de opressão que nos nega direitos, e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para serem racistas.

Opressão é quando um grupo detém privilégios em detrimento de outro.

Brancos não são mortos por serem brancos, pois o grupo racial a que fazem parte é o grupo que está no poder. Um negro pode ser morto por ser negro.

Muitas vezes o que pode ocorrer é um modo de defesa: algumas pessoas negras, cansadas de sofrer racismo, agem de modo a rejeitar de modo direto a branquitude, mas isso é uma reação à opressão e também não configura racismo: que poder social essa atitude tem?

Agora, ser xingada por ser negra é mais um elemento do racismo instituído que, além de me ofender, me nega espaço e limita minhas escolhas. Vestir nossa pele e ter empatia por nossas dores, a maioria não quer”.

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De fato, o racismo é arraigado na cultura brasileira.

O problema da argumentação está em afirmar que ele se constitui por meio de “relações de poder institucional” entre “grupos raciais”.

É pior que isso. O racismo é anterior ao “poder institucional”. Está embrenhado na sociabilidade e determina o acesso dos negros às instituições e tudo o mais.

Nos casos em que indivíduos negros, assim como mulheres, assumem postos-chave deste “poder institucional” – vamos assumir aqui que isso não se limita ao poder político (Estado), mas abarca qualquer outra instituição pública e qualquer domínio privado (poder econômico) -, a opressão não necessariamente diminui, mas pode se fortalecer ainda mais.

Ou seja: brancos não são mortos por serem brancos, mas isso não se deve ao fato de pertencerem a um “grupo racial” que está no poder; assim como negros são mortos por serem negros, mas não porque não possuem “poder institucional”.

É claro que uma maior ocupação do “poder institucional” por negros pode ter efeitos sobre a sociabilidade e atenuar o racismo. O problema é que a opressão ultrapassa o caráter racial: o grupo detentor de privilégios não é dominante por sua branquitude, mas por sua classe social.

Há opressão racial sistemática contra os negros, mas isso não significa necessariamente que os brancos desfrutam de um privilégio racial, ou então, que tal privilégio possua qualquer importância e caracterize um opressor – a menos que seja um privilégio não sofrer prejuízo, ainda que não haja qualquer “outro” favorecimento; donde se concluiria que um mendigo, desgraçado por tudo exceto sua cor branca, possui diante do negro mais realizado um privilégio (ou “poder institucional”) que o torna opressor deste.

Ao contrário, o prejuízo dos negros independe do favorecimento dos brancos. Só há privilégio racial quando se obtém vantagem sobre outro por conta da diferença das cores de pele entre ambos.

Certamente o branco não sofre opressão por ser branco, e o negro sofre por ser negro. Mas o branco e o negro são oprimidos por muitas outras coisas comuns a ambos. Não existe indivíduo cujo único atributo seja a cor da pele. “O branco” é também mulher, pobre, deficiente físico, etc. E “o negro” não é homem, rico, poderoso e opressor simplesmente apesar de ser negro.

Um fato histórico, cujo conhecimento é (ou devia ser) trivial, explica a opressão e a negação de direitos e acessos dos negros no Brasil. O fim da escravidão significou o abandono à própria sorte de uma multidão de negros, desprovidos de terra e meios de produção, o que resultou na ampla maioria dos pobres e miseráveis da sociedade. Somado à história e cultura do Brasil colonial, esse fato explica todas as formas de opressão que os negros sofrem ainda hoje.

Mas o identitarismo – do qual Djamila é ideóloga no Brasil -, ao negligenciar ou simplesmente falsificar a história, contribui para produzir os “modos de defesa” que consistem em rejeitar e atacar diretamente a branquitude, numa forma de reação reducionista e impotente contra a opressão. Que poder social essa atitude tem? Nada menos que empoderar a opressão, na ilusão de estar combatendo-a.

Por isso, e por criar e cultivar idéias absurdas quanto ao “protagonismo” nas lutas etc., é que o identitarismo afasta os brancos de “vestir nossa pele e ter empatia por nossas dores”, do que os negros, a um só e mesmo tempo, reclamam e rechaçam.

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CONFIRA TAMBÉM:

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Protagonismo e vivência

A fantasia do capitalismo enquanto produto cultural “eurocêntrico”

Você é um privilegiado

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Seguir as instruções corretas é um dever do opressor

Um diálogo maiêutico sobre eurocentrismo e epistemologia com uma acadêmica pós-mod

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Típica figura acadêmica veio me dizer que iria participar de um evento sobre “epistemologia do sul”.

Perguntei: o que é uma “epistemologia do sul”?

Ela respondeu: “em princípio, são críticas às narrativas do colonialismo eurocêntrico”.

– E o que é eurocentrismo?

– “Eurocentrismo é a centralização da ideia de pensamento tal qual ele se forma e se faz na Europa, é o pensamento enquanto centralidade, o chamado pensamento único, dominante, hegemônico”.

– Vamos com calma. Qual idéia de pensamento???

– “A de dominador”.

– Onde isso aparece na epistemologia?

– “Na epistemologia funciona pelo conceito de natureza e no que pode o homem sobre a natureza”.

– Bom, primeiro temos de ver se essa epistemologia eurocêntrica é realmente um constructo cultural de um continente com enormes diferenças culturais em seus tantos povos distintos, se ela é “interesseira” (política) ou não. Daí veremos o que é a tal “crítica ao eurocentrismo” e quão crítica ela é.

– “A crítica ao eurocentrismo passa pela filosofia da natureza, pelo romantismo, pela hermenêutica…”.

– Pra começar, natureza em epistemologia não é a natureza que também chamamos de universo; natureza aqui significa essência, um grupo de atributos fundamentais pra constituir o conceito de um objeto. Nada tem de dominação nisso.

– “O que é essência? Tempão que não ouço isso”.

– Essência: grupo de atributos fundamentais pra constituir o conceito de um objeto.

– “Fundamentais”.

– Sim.

– “Qual o prazo de validade disso?”

– O dia que não mais houver lembrança do objeto nas culturas. Mas deixe-me dar um exemplo: o que é uma mesa? A cor da mesa é um atributo necessário para definir o que uma mesa é? Dizer o que é uma mesa, de modo que o seu ouvinte não confunde isso com uma cadeira ou uma cama, é dizer com precisão o conceito de mesa, que expressa o grupo de atributos fundamentais pra dizer o que é mesa. A cor não é um deles.

– “Vou ver a definição no google e como dizer isso”.

– Eu fui ao Aurélio procurar saber o que é mesa, mas a definição é horrível… então eu mesmo fiz o conceito aqui. Traz aí a do google e depois eu digo a minha.

– “Eu diria que o google traz o contrário do que diriam os antropólogos… móvel composto de um tampo horizontal, que se destina a fins utilitários: refeições, jogos, escrita, costura, apoio etc”.

– Definição ruim, mas melhor que a do Aurélio. Eu digo que mesa é um móvel de superfície plana, material sólido consistente, geralmente sustentado por um ou mais pés (mas tb pendurado por linhas na parede ou teto), cuja função é sitiar refeições, reuniões, estudos etc.

– “É mais uma metáfora do que uma metonímia… os antropólogos dizem que a mesa é um lugar de conversar, que as refeições foram colocadas à mesa pela sociedade ocidental”.

/…/

PS. Talvez alguém diga que eu não expressei o conceito de mesa com precisão, pois eu disse que é um móvel “~geralmente~ sustentado por um ou mais pés (mas tb pendurado por linhas na parede ou teto), cuja função é sitiar refeições, reuniões, estudos ~etc~”.

Há mesas em forma de cubo ou tocos de árvore, sem pés nem penduradas, com fins ritualísticos, necrológicos ou orgiáticos, entre muitos mais.

Mas o que mede a precisão do conceito não é um rol dos tantos atributos que se pode auferir do que existe e do que irá se inventar, bem como dos tantos usos conhecidos, costumeiros, inéditos e imaginários, e sim do tipo e lugar de conversa e do interlocutor em que se comunica o conceito.

Nada disso é pós-modernismo, mas sim uma formulação baseada na ontoprática, na observação da cotidianeidade das regras de uso da linguagem. Isso é o último Wittgenstein, mas já aparece antes em Marx.

 

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O indivíduo em luta - na literatura clássica, moderna e pós-moderna
progresso do estranhamento

A fantasia do capitalismo enquanto produto cultural “eurocêntrico”

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Tem sido difundida a idéia de que o capitalismo é “eurocêntrico”, produto cultural de toda a Europa – e/ou americano, com o que se diz que os EUA são um país “europeu”, na medida que sua “cultura” é capitalista.

Em primeiro lugar, falar de “eurocentrismo” é dar uns bons bofetões na história e nas culturas de cada país europeu. É falar para um basco que ele é espanhol e ainda mais que isso, pois seu país e a Espanha são igualmente “europeus”; é afirmar a supressão das diferenças entre os sérvios e os bósnios; etc.

Quanto a igualar EUA e Europa, é pior que dizer que um texano e um novaiorquino são idênticos.

O capitalismo surgiu na Europa, é fato; mas ele se fez “pelas costas” dos indivíduos e suas culturas. Tanto é que ele começa na Itália, mas definha aí quando Portugal dobra o Cabo da Boa Esperança e traça uma nova rota de comércio com a China e a Índia.

O capitalismo entra em sua fase madura com a Revolução Industrial na Inglaterra, o que deixa para muito atrás o mercantilismo, e dá um gigantesco salto em seu processo de globalização.

Isso não ocorre com o capitalismo se adequando às diferentes nações e culturas, mas adequando estas a ele.

Basta ver, p.ex., como o Japão se tornou “ocidental” depois da Segunda Guerra.

O capitalismo nunca foi, pois, italiano, português, inglês ou americano; nunca foi, em nenhum sentido, nacional, e muito menos uma cultura. Ao contrário, submeteu todas as nações e culturas a ele e aos seus aparatos estatais, o que até hoje resulta em tragédias, tais como a dos sérvios ou dos bascos.

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deturparam o capitalismo
cultivando a esterilidade