Nota sobre a Caverna de Platão

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A alegoria da caverna de Platão é uma ilustração da passagem do rudimentar para o espiritual, do ilusório para o verdadeiro, da ignorância para a ciência, da heteronomia para a autonomia, do desamparo para o cuidado de si e, ainda, entre outras coisas mais, da ilustração mesma para a idéia, do pensamento sensível, por imagens, para o pensamento espiritual, por conceitos.

Há quem saia, há quem volta, há quem desiste no meio do caminho, mas o fato é que só se sai por meio de uma trilha íngrime, escarpada e tortuosa, que só a persistência faz parecer ficar menos árdua à medida que se esfola no cascalho. E no fim, temos o lótus se alimentando mas também vencendo o lodo.

Para entrar ou voltar ao fundo da fossa há uma estrada impecável, reta, sem limites de velocidade, com o mais rápido rally em piloto automático. Mergulhar nas trevas da estupidez e da autodestruição não é apenas fácil, é prazeroso; e não faltam aplausos.

O humano tem essa plasticidade de virar um deus ou uma besta fera (o que não está sempre à disposição de sua escolha).

Ao subir, é possível ver lá fora aonde se quer chegar. Ao descer, nada se distingue; nesse breu, tanto faz aonde a estrada vai dar.

(algum dia esse rabisco continua.)

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O Sol acima do Sol: não é claro, é a claridade

Imortalidade

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Aqueles tantos indivíduos da desaparecida civilização micênica, que deixaram nada ou quase nada de suas vidas na memória da humanidade, foram parte dos pressupostos que fizeram Pitágoras trastear um nervo de carneiro e descobrir as ondas sonoras de acordo com cada ponto em que dividia o nervo.
 
 
O nervo do carneiro de Pitágoras faz parte dos pressupostos da subjetividade de todos os indivíduos vivos ou mortos que se fizeram ouvintes de música.
 
 
Quantas coisas mais não poderíamos citar?
 
 
Aquele indivíduo de quem não há nenhuma memória, daquela civilização desaparecida há mais de 3 mil anos, continua entre nós e, mais que isso, em nós, mesmo que não saibamos nada a seu respeito.
 
 
Ser é mais que saber e isso já é mais que suficiente para dizermos: na morte o corpo vira natureza, a alma vira mundo.
 
 
É isso o que interessa? Ora, o interesse vira paz absoluta.
 
 
Não haverá justiça? Única resposta para quem deseja um tribunal que, belo dia, faça a divina redistribuição da renda é: não se preocupe. Ocupe-se.
 
 
Por fim, comporte-se na hora da morte. Muito antes morreu Pátroclo, que era um nego bem melhor do que nós.
 
 
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Máscara mortuária de Agamenon, também melhor do que nós
 
 

Necropolítica, Deep State e Nutella Gourmet

 
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A nova (nem tanto) moda intelectual do academicismo autista é inventar novos “atributos” para os termos que expressam as noções de sempre. Pois até o delírio tem limite na hora de se elucubrar “conceitos” de coisa nenhuma. Depois de se explorar a jazida dos eufemismos à exaustão, o jeito foi passar a anexar adjetivos ou advérbios sensacionalistas aos termos tradicionais.
 
O que serve bem como marketing de livro “sério” que irá coabitar as prateleiras dos panfletos de receitas mágicas etc. das livrarias de shopping ou de beira de estrada. Dá Ibope; especialmente entre os cultivadores de filosofia e ciências humanas etéreas que alimentam o imaginário fantástico da esquerda brasileira e mundial.
 
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Senão, vejamos: o “Deep State” seria um “Estado paralelo”, oculto (exceto ao conceitualista – em seu gabinete ou no youtube), que opera a portas fechadas! Como se as decisões no Estado fossem tomadas no parlamento público e não na entrega privada dos mensalões, etc. Ora, tudo que se especula como atributos supostamente específicos desse suposto conceito “Deep State” não expressa mais que o conteúdo do termo “State” (aliás, expressa menos).
 
(Ou alguém acha que tudo que se passa no Estado está indexado para maior “transparência pública”? Não, amigo. Aqui a world wide web é tão deep quanto a deep web, aliás, mais deep que web.)
 
E a “necropolítica”… é uma política especialmente necrófila! Como se a política não fosse o aquinhoamento do butim, saqueado do povo, entre as forças aliadas a um governo, o mesmo povo contra o qual qualquer democracia faz presos políticos, após o uso de violência policial pública e antes da violência policial privada (se na rua vale atirar no olho das pessoas etc, imagina no momento da tortura), quando não simplesmente descamba para um Estado de Exceção ou para a guerra, mandando o povo matar outro povo e se matar, tudo em nome de interesses privados. Portanto, necropolítica é um pseudoconceito que visa simplesmente dar pompa e circunstância ao que não passa de política.
 
Como se o Estado e a política não fossem instrumentos de perpetuação da divisão da sociedade em classes, da completa desapropriação de uma classe (que trabalha) para a total propriedade da outra (que parasita).
 
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A política é a continuação da guerra por meio de tréguas. E o Estado é seu instrumento bélico. Há alguma política que não seja necrófila? Há algum Estado que atenda o interesse público sem que isso não seja o disfarce da partilha dos privilégios? Não é à tôa que tais pseudoconceitos sempre se mostram “complexos”, isto é, confusos. Pois não têm nada a nos dizer além da redundância.
 
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Resta agora vir aí o conceito de “Nutella Gourmet”.
 
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cientista humano produzindo mercadorias conceituais

Positivismo: pensamento e prática da verniz do senso comum

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Positivismo, apesar de seu aura academicista, não é tanto uma ideologia, ou metodologia, quanto uma atitude. Trata-se de atentar ao que está POSTO à observação, à experiência sensível. O positivismo é um empirismo, e é historicamente o mais abstrato.

Ao pretender ser meio de obter ou elaborar conhecimento objetivo e concreto, afirma sua rejeição à metafísica; porém, em seu entendimento restrito ao empírico, identifica (e reduz) esta à busca da compreensão das causas de um fenômeno. O positivismo visa observar tão somente relações entre fenômenos empíricos (onde “tudo é relativo” – afirmação de caráter metafísico que não tem problemas com a censura positiva). A causalidade mesma não passa de uma crença metafísico-teológica; um “hábito”, dizia David Hume (cujo Enquiry Concerning Human Understanding, uma obra-magnum do empirismo, panfleto histórico do combate à metafísica, teria destino trágico caso fosse levada a sério a última frase do livro).

Esse espírito “objetivo”, laico, republicano e moderno do positivismo é, como a falência histórica do empirismo tornou evidente (ao desaguar no ceticismo de Hume, ainda nos idos do séc. XVIII), um subjetivismo raso, mas não arbitrário, e sim um produto social, consequente à prática dos indivíduos da classe burguesa.

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A gênese do positivismo está no mercado – não o mercado mundial, e sim o mercado empírico. O espírito positivo tem raízes no olhar e na ação do dono da quitanda em sua atividade prática imediata na feira, onde realiza trocas com seus clientes (a.k.a. “consumidores”) após parlarem suas barganhas e pechinchas particulares.

Este é o habitat em que o burguês vivencia a experiência prosaica de um cotidiano mercantil (âmbito da “circulação simples de mercadorias”, segundo Marx); é deste aqui-agora que a atitude positivista se nutre.

O aqui-agora, apesar da sensibilidade nos sugerir ser o que há de mais concreto, é a forma mais abstrata, primitiva, pueril e ilusória da apreensão da realidade pela consciência, como Hegel argumenta no início da Fenomenologia; porque é o espaço e tempo do instante efêmero e em permanente mudança.

Ora, o burguês não conhece os bastidores (as “causas”) do mercado. Ele não vivencia a esfera da produção, mas apenas a superfície abstrata da troca de mercadorias (“esfera pública”); e, é claro, quando retirado ao seu quadrado particular, experimenta tão somente o desfrute egoísta no consumo (“esfera privada”). Donde não reconhecer nos “consumidores” a determinação primeira de produtores.

O burguês não trabalha, donde não age em cooperação com os outros, tal como o trabalho exige dos trabalhadores. O burguês é o próprio homem-lobo de Thomas Hobbes, imediatamente em guerra contra os demais burgueses (e contra os trabalhadores, na medida que estes querem maiores salários e, portanto, atentam contra os lucros), pois assim o mercado exige dos livres quitandeiros.

(Tudo isso já explica muita coisa. Por ex., como o defunto do empirismo pôde se levantar da cova e se tornar, ainda que um tanto apodrecido, uma das formas mais universais da consciência a partir de meados do séc. XIX, no que segue firme até hoje. Pois a classe dominante possui, evidentemente, o mais amplo domínio dos meios de produção da consciência, das idéias, dos valores morais e outros mais, etc.)

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A vivência restrita ao aqui-agora da circulação simples de mercadorias impede a mentalidade burguesa de conhecer as relações não-empíricas entre os fenômenos; muito antes, ela rejeita que existam. A partir disso, o burguês chega a negar a existência da própria sociedade. Para ele o que há é um amontoado de indivíduos, uma massa amorfa.

Daí ele ver tudo a partir do ponto de vista da moral. O trabalhador (ou “colaborador” e demais eufemismos infames) é “livre negociante” de suas forças no mercado de trabalho, tanto quanto o burguês é livre comprador (eis a fraternidade entre os igualmente livres); se há “luta de classes”, ou melhor, “conflito” entre “rico e pobre” – pois “classes sociais não existem” -, é por conta de inveja, preguiça, demérito do pobre, etc. O “pobre” é “livre pra se demitir” quando quiser e, portanto, não existe exploração; e é livre para escolher um “patrão melhor”, escolher um patrão que lhe convém (ou escolher ser patrão, novidade empreendedorística das crises do capital em finais do séc. XX; escolher viver sem patrão não convém, e rende ao indivíduo apenas alguns eufemismos “de esquerda” tão infames quanto os burgueses, tais como “morador de rua”, etc). Notável: patrões são diferentes enquanto patrões! Pois no “pensamento positivo social” não há nivelamento dos indivíduos por meio de qualquer determinação da classe burguesa, o que significa negar a existência de classes sociais (na pocilga social da pequena burguesia, este limbo aristocrático da classe trabalhadora ocupado por cabeças nefelibatas e pés mergulhados em chorume, isso se torna uma convicção: “patrão não é sinônimo de porco avarento!” Assim imagina um empirista subpositivista que sequer sabe o que é um patrão de verdade).

E quando a luta de classes ocorre de forma tão anárquica quanto a produção capitalista – que visa fins particulares, alheios e em concorrência universal -, ou seja, difusa e desorganizada, a burguesia faz dela um enorme ramo de negócios: trata-se da indústria social do crime, que emprega cifras fabulosas para lidar com o que se acredita ser um problema moral, restrito a cada indivíduo (“vagabundo”, “bandido” etc), quando na verdade é totalmente estranho, alheio, exterior aos próprios criminosos. O fato de surgirem 100 novos criminosos para cada 10 eliminados não chama a atenção do burguês, que prefere se ater a relações não-metafísicas tais como a má “natureza humana”, o império da vontade e escolha soberana do indivíduo isolado, a purificação da alma por meio da culpa e do martírio do corpo etc.

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O primeiro a pretender sistematizar o positivismo numa forma filosófica foi A. Comte. É notável que ele afirme a evolução ou progresso da humanidade através de 3 etapas (ou “leis”) – espírito religioso, espírito metafísico e, finalmente, espírito positivo (ou “científico”) – e nos demonstre isso em sua própria trajetória individual. Comte era engenheiro; posteriormente elaborou a filosofia positivista, uma forma de empirismo ultra-metafísico; esta desaguou, em seus derradeiros escritos e anos de vida, na criação da Religião Positivista.

Cá entre nós: parece, mas não é nada contraditório. Ou não é nada surpreendente, já que é só contradição em cima de contradição. E que tal saber que o único país que levou Comte a sério e fundou templos positivistas foi o Brasil? “Ordem e Progresso”: sequer consegue ser decepcionante.

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não conte comigo