Na luta de classes nem todas as armas são boas

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Leminski é muito legal. Mas teve a brutal infelicidade de dizer que

– “na luta de classes todas as armas são boas”.

Stalinistas adoram repetir isso, tal como a burguesia também adora ouvir, enquanto Maquiavel, mesmo em seus momentos mais maquiavélicos, teria nojo.

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Não, Leminski. Absolutamente não!

Na luta de classes as armas boas são armas boas, armas que fortalecem os trabalhadores e derrubam os burgueses.

Armas que disparam pra trás só são boas do lado de lá da luta. É pra burguesia que você escreveu seus poemas?

As armas que o pseudomarxismo, ou melhor, do velho e apodrecido, mas ainda insepulto, marxismo vulgar – nascido ainda na época de Marx, tornado tradição a partir da 2ª Internacional, e arraigado de forma definitiva como ideologia oficial pela atuação geopolítica da URSS (disseminadora da prática e do catecismo stalinistas, a.k.a. “marxismo-leninismo”, a doutrina das conveniências do Estado soviético transformadas em “teoria”) – não são boas para lutarmos contra a burguesia.

O marxismo vulgar é a degradação do pensamento revolucionário para uso e abuso de interesses particulares. Em outras palavras, transforma teoria em apêndice da prática política e instaura o praticismo (que “vale mais que mil teorias”). Deformou Marx até se tornar mitologia, pensamento político.

Essas armas são ótimas para produzir a desmobilização dos trabalhadores, a desconfiança e as piores certezas, tão logo percebam onde termina a fila do abate.

Quantas vezes a História precisa nos mostrar isso?

E depois nós temos ainda que ouvir chorumelas sobre a “guinada dos trabalhadores ao fascismo”, como se houvesse algum, e como se a esquerda não tivesse, muito antes, jogado os trabalhadores no colo da direita.

A esquerda cujo discurso sequer menciona a revolução social, a socialização da propriedade privada e o fim do Estado merece pregar seus sermões no fundo da latrina. Que vá dialogar com a direita por lá.

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lem
noites de facas longas

 

Entorpecimento da sensibilidade e morte da arte

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A arte é a atividade de educar a sensibilidade por meio da humanização do mundo.

Por outro lado, o mundo provê ao artista não apenas o material e os meios da sua atividade, mas também as condições da produção de sua própria subjetividade (dons, talentos, sentidos, pensamento, sentimentos, interesses etc.), bem como o saber artístico; por fim, not least, a demanda histórica e social pela arte, a finalidade humana específica de um tempo à qual a arte responde.

O drama do artista de hoje é que ele educa seu senso estético em meio a um mundo que oferece e exige o anestesiamento da sensibilidade de todos.

O que seria refinamento sensível se torna isolamento e idiossincrasia, o que seria ampliação do espírito vira loucura, o que seria desenvolvimento da criatividade se perverte como capricho, o que seria luz e beleza se mistifica em mistério e estranhamento, o que seria arte e humanização se degenera no entorpecimento e na irracionalidade, o que seria estética se dissolve em discursos sofísticos, o que seria plenitude de sentido se torna mercadoria descartável ou lembrança vaga de academicistas no boteco.

O que era pra ser alma vira tara, depressão, desalento e autodestruição.

De modo que não é incomum aos que padecem de gênio e percepção a alternativa de se matar o doente para curar a doença, ainda que, pacientemente, arrastem o tratamento como quem aproveita a sarjeta para lavar o coração, esfregando o peito no asfalto.

Como não haveria de morrer a arte, quando a humanidade inteira apodrece hoje por sob a própria pele?

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Herbert James Draper - Ulysses and the Sirens (1909)
Herbert James Draper – “Ulysses and the Sirens” (1909)

ReSeT – um pequeno álbum de minhas composições musicais

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Para quem gosta de música, esse é meu trabalho como compositor:

ReSeT – HG Erik

 

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ReSet HG Erik b

Fernando Pessoa: ultimato à razão

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Assistir Maria Bethânia recitando Ultimatum de “Álvaro de Campos” é de dar nó nas tripas.

Porque não é exatamente um ato majestoso de emprestar sua bela voz a um poeta genial (se bem que não é nada que causa espanto em quem manja o qualé da turma da MPB do dendê).

Pra começo de conversa, essa não é uma poesia genial do pluri-egocêntrico Fernando Pessoa.

Seu ultimato é nitidamente nietzschista. Quase uma caricatura; e seria, se o original fosse mais que isso.

Nietzsche é aquele que aplaudiu o massacre covarde da Comuna de Paris pelas tropas prussianas a pedido de Thiers, que havia acabado de perder a guerra para a mesma Prússia e ainda coroou Guilherme I como Imperador no Palácio de Versalhes. Um punhado de fatos que lançou a outrora revolucionária França na indelével latrina das grandes e irremediáveis ignomínias da história.

Pior que a burguesia francesa se oferecendo de capacho ao seu vencedor e solicitar sua ajuda para chacinar aqueles que lutaram ao seu lado, só mesmo um saxão nanico exaltando as “virtudes heróicas” dos que trucidaram os “bárbaros socialistas franceses”. Um elogio não muito original vindo de um acadêmico do lado-de-lá do Reno, que cultiva taras acerca da própria impotência e realiza sua Vontade alemã ao se oferecer como capacho do capacho.

E o que dizer de seu pimpolho lusitano, que brada contra “vós [socialistas] que confundis o humano com o popular”, para terminar seu manifesto afirmando: “Eu da raça dos navegadores, /…/ eu da raça dos descobridores, /…/ proclamo isso bem alto, saudando abstratamente o infinito”?

(“Saudando abstratamente o infinito”: parece bonito, parece profundo, mas é apenas raso, idiota e brega. Porque não basta saudar o infinito; é preciso fazê-lo de forma abstrata, ou seja, sem saudá-lo de verdade, até porque o infinito é coisa nenhuma. O que se adequa perfeitamente ao que Fernando Pessoa havia acabado de usar para falar de si mesmo: a expressão pomposinha “raça dos descobridores” – com o que ele se vangloria de ser um… português. Ora pois, não é qualquer um que tem pedigree e bigodinho de marinheiro.)

As declarações de desprezo pelo socialismo não provém de nenhuma particularidade pessoal de “Álvaro de Campos”. Poucos anos depois, Fernando Pessoa itself se permitiu demonstrar como e por que um banqueiro é um homem que luta pela emancipação da humanidade ao angariar seus lucros privados, rejeitando as “falsas convenções da sociedade” e obedecendo apenas ao egoísmo “natural” da “espécie humana” (cf.: Fernando Pessoa e o “verdadeiro anarquismo” a serviço da burguesia).

É engraçado notar como o irracionalismo segue uma rota rigorosamente coerente, rumo ao profundo âmago do umbigo filosofante. Tal como seu muso inspirador de fanfarronices, Fernando Persona finalmente se imagina “pura dinamite”, demiurgo do “novo”, abraçando o Atlântico. É o revolucionário de um mundo particular e totalmente privê.

Nada disso é casual. Quando os ideólogos da burguesia, a partir dos eventos históricos que varreram a Europa em 1848, admitiram sua derrota ideológica no campo da razão, lhes restou combater o socialismo com a elegância da abstração, a saudação vazia ao nonsense, o pronunciamento orgulhoso do mundo como mero absurdo e, enfim, a adoração religiosa do magnânimo “Eu”, que rompe todos os grilhões existentes na realidade por meio de bazófias saídas do porão da fantasia, fingindo iconoclastia e esbanjando adulação aos seus “heróis da humanidade”, à “raça” dos que têm pedigree no bolso.

“Álvaro de Campos” é apenas mais uma pessoa dentre tais ideólogos. Não como filósofo, porque é mais fácil vender irracionalismo sob forma de poesia que de filosofia – já que não pretende dizer nenhuma verdade ao dizer que a verdade não existe; donde a poesia ser ruim pretendendo ser poesia filosófica, enquanto a filosofia já foi usada até mesmo pelos cristãos… ou por Nietzsche, “O Anticristo” da filosofia poética que escandalizou o próprio Satã.

E no Brasil, last and least, coube e cabe à música popular (tanto a baiana quanto as congêneres) declamar a crítica à razão com a aura da rebeldia própria da academia. Arte que faz “pensar”. Quem viu Bethânia proferi-la não pode desvê-la, e talvez nem deva tentar.

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Nietzsche
filosofia do “para mim”