Positivismo: pensamento e prática da verniz do senso comum

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Positivismo, apesar de seu aura academicista, não é tanto uma ideologia, ou metodologia, quanto uma atitude. Trata-se de atentar ao que está POSTO à observação, à experiência sensível. O positivismo é um empirismo, e é historicamente o mais abstrato.

Ao pretender ser meio de obter ou elaborar conhecimento objetivo e concreto, afirma sua rejeição à metafísica; porém, em seu entendimento restrito ao empírico, identifica (e reduz) esta à busca da compreensão das causas de um fenômeno. O positivismo visa observar tão somente relações entre fenômenos empíricos (onde “tudo é relativo” – afirmação de caráter metafísico que não tem problemas com a censura positiva). A causalidade mesma não passa de uma crença metafísico-teológica; um “hábito”, dizia David Hume (cujo Enquiry Concerning Human Understanding, uma obra-magnum do empirismo, panfleto histórico do combate à metafísica, teria destino trágico caso fosse levada a sério a última frase do livro).

Esse espírito “objetivo”, laico, republicano e moderno do positivismo é, como a falência histórica do empirismo tornou evidente (ao desaguar no ceticismo de Hume, ainda nos idos do séc. XVIII), um subjetivismo raso, mas não arbitrário, e sim um produto social, consequente à prática dos indivíduos da classe burguesa.

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A gênese do positivismo está no mercado – não o mercado mundial, e sim o mercado empírico. O espírito positivo tem raízes no olhar e na ação do dono da quitanda em sua atividade prática imediata na feira, onde realiza trocas com seus clientes (a.k.a. “consumidores”) após parlarem suas barganhas e pechinchas particulares.

Este é o habitat em que o burguês vivencia a experiência prosaica de um cotidiano mercantil (âmbito da “circulação simples de mercadorias”, segundo Marx); é deste aqui-agora que a atitude positivista se nutre.

O aqui-agora, apesar da sensibilidade nos sugerir ser o que há de mais concreto, é a forma mais abstrata, primitiva, pueril e ilusória da apreensão da realidade pela consciência, como Hegel argumenta no início da Fenomenologia; porque é o espaço e tempo do instante efêmero e em permanente mudança.

Ora, o burguês não conhece os bastidores (as “causas”) do mercado. Ele não vivencia a esfera da produção, mas apenas a superfície abstrata da troca de mercadorias (“esfera pública”); e, é claro, quando retirado ao seu quadrado particular, experimenta tão somente o desfrute egoísta no consumo (“esfera privada”). Donde não reconhecer nos “consumidores” a determinação primeira de produtores.

O burguês não trabalha, donde não age em cooperação com os outros, tal como o trabalho exige dos trabalhadores. O burguês é o próprio homem-lobo de Thomas Hobbes, imediatamente em guerra contra os demais burgueses (e contra os trabalhadores, na medida que estes querem maiores salários e, portanto, atentam contra os lucros), pois assim o mercado exige dos livres quitandeiros.

(Tudo isso já explica muita coisa. Por ex., como o defunto do empirismo pôde se levantar da cova e se tornar, ainda que um tanto apodrecido, uma das formas mais universais da consciência a partir de meados do séc. XIX, no que segue firme até hoje. Pois a classe dominante possui, evidentemente, o mais amplo domínio dos meios de produção da consciência, das idéias, dos valores morais e outros mais, etc.)

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A vivência restrita ao aqui-agora da circulação simples de mercadorias impede a mentalidade burguesa de conhecer as relações não-empíricas entre os fenômenos; muito antes, ela rejeita que existam. A partir disso, o burguês chega a negar a existência da própria sociedade. Para ele o que há é um amontoado de indivíduos, uma massa amorfa.

Daí ele ver tudo a partir do ponto de vista da moral. O trabalhador (ou “colaborador” e demais eufemismos infames) é “livre negociante” de suas forças no mercado de trabalho, tanto quanto o burguês é livre comprador (eis a fraternidade entre os igualmente livres); se há “luta de classes”, ou melhor, “conflito” entre “rico e pobre” – pois “classes sociais não existem” -, é por conta de inveja, preguiça, demérito do pobre, etc. O “pobre” é “livre pra se demitir” quando quiser e, portanto, não existe exploração; e é livre para escolher um “patrão melhor”, escolher um patrão que lhe convém (ou escolher ser patrão, novidade empreendedorística das crises do capital em finais do séc. XX; escolher viver sem patrão não convém, e rende ao indivíduo apenas alguns eufemismos “de esquerda” tão infames quanto os burgueses, tais como “morador de rua”, etc). Notável: patrões são diferentes enquanto patrões! Pois no “pensamento positivo social” não há nivelamento dos indivíduos por meio de qualquer determinação da classe burguesa, o que significa negar a existência de classes sociais (na pocilga social da pequena burguesia, este limbo aristocrático da classe trabalhadora ocupado por cabeças nefelibatas e pés mergulhados em chorume, isso se torna uma convicção: “patrão não é sinônimo de porco avarento!” Assim imagina um empirista subpositivista que sequer sabe o que é um patrão de verdade).

E quando a luta de classes ocorre de forma tão anárquica quanto a produção capitalista – que visa fins particulares, alheios e em concorrência universal -, ou seja, difusa e desorganizada, a burguesia faz dela um enorme ramo de negócios: trata-se da indústria social do crime, que emprega cifras fabulosas para lidar com o que se acredita ser um problema moral, restrito a cada indivíduo (“vagabundo”, “bandido” etc), quando na verdade é totalmente estranho, alheio, exterior aos próprios criminosos. O fato de surgirem 100 novos criminosos para cada 10 eliminados não chama a atenção do burguês, que prefere se ater a relações não-metafísicas tais como a má “natureza humana”, o império da vontade e escolha soberana do indivíduo isolado, a purificação da alma por meio da culpa e do martírio do corpo etc.

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O primeiro a pretender sistematizar o positivismo numa forma filosófica foi A. Comte. É notável que ele afirme a evolução ou progresso da humanidade através de 3 etapas (ou “leis”) – espírito religioso, espírito metafísico e, finalmente, espírito positivo (ou “científico”) – e nos demonstre isso em sua própria trajetória individual. Comte era engenheiro; posteriormente elaborou a filosofia positivista, uma forma de empirismo ultra-metafísico; esta desaguou, em seus derradeiros escritos e anos de vida, na criação da Religião Positivista.

Cá entre nós: parece, mas não é nada contraditório. Ou não é nada surpreendente, já que é só contradição em cima de contradição. E que tal saber que o único país que levou Comte a sério e fundou templos positivistas foi o Brasil? “Ordem e Progresso”: sequer consegue ser decepcionante.

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