J. Chasin, meu mapa para conhecer o universo marxiano

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Outro dia um interpretacionista me disse que leio Marx através das lentes de J. Chasin.

Na verdade, não. Eu apenas aprendi a ler com o Chasin. Agora o que eu leio é o próprio Marx, não fico lendo o que alguém “interpretou” do Marx.

(Inclusive o Chasin ficou devendo quanto à última década de Marx. Mas é que ele morreu antes de entrar aí.)

Depois um amigo me perguntou se, ao estudar no curso em que o Chasin lecionava, cheguei a “desfrutar do baita privilégio de conhecê-lo”.

Sim, conheci.

A historieta é boa, mas é triste, porque não foi um contato amistoso. Quem quiser saber, continua a ler.

Ele estava furando a greve de 98, e eu era um calouro burro. Entrei no movimento estudantil e estava organizando uma assembléia de alunos. Abri a porta durante a aula dele – por que não fiquei por lá, maldito deus??? – e o interrompi para pedir um tempinho e dar o toque nos alunos.

Até aí, tudo bem. Mas eu estava acompanhado de um estudante, militante do PCB, que dizia “o Chasin não pode me ver aqui”. Tretas. O Chasin já ia me responder quando, sei lá porque, meu coleguinha resolve enfatizar meu pedido e dá as caras.

Aquele senhor branquelo, cabeludo, com óculos de televisão na cara e um maço de cigarros aceso na boca, ficou vermelho de cima a baixo e expulsou a gente aos berros: “não quero saber de assembleiazinha nenhuma de…”. Agradeci no mesmo instante e fechei a porta antes dele acabar de falar.

Daí pra frente eu tinha algo mais que as maledicências insolentes de movimento estudantil pra me fazer acreditar que o Chasin fosse um revisionista (afinal, como pode um marxista “defender o FHC contra o PT”? etc.), e passei a alimentar certa repulsa por ele.

Poucos meses depois, Chasin morreu, no dia 31 de dezembro.

Pensei que havia me livrado de um professor hostil.

No ano seguinte, me matriculei na matéria obrigatória que a professora Ester, sua recém-viúva, abalada e deprimida, ministrou naquele semestre.

Lá nas últimas aulas ela passou o “Estatuto Ontológico” pra turma ler. Esse texto mudou tudo na minha cabeça.

Meus colegas ficavam boiando na linguagem do Chasin. Eu fiquei completamente admirado. Ele não era um acadêmico, mas um puta escritor, pintor de idéias, jardineiro das palavras e lutador de navalha teórica. Um limpa-trilhos no estômago; e que vocabulário colorido, que pesquisa de rigor, que autenticidade radical! Como outro colega já havia me advertido: “Chasin é filósofo, os outros são professores de filosofia”.

Foi então que toda aquela terra perdida que é um curso de filosofia passou a fazer sentido pra mim, e tudo mais que consigo compreender. Chasin me apresentou um norte, um critério, um mapa para tudo aquilo que é pensamento e história humanos. Ele me mostrou um Marx completamente diferente, novo, rico, revolucionário sem concessões, um universo inteiro a se desbravar com fascínio, totalmente diferente daquele espantalho insípido de manual – que, com sorte, é o que as pessoas chegam a conhecer. Foi um Marx que não está na interpretação de ninguém; foi aquele que está em seus escritos. E eu fiz essa coisa quase sobrenatural que é pegar o autor e ler o que ele mesmo disse.

E cheguei aqui. Marx me ensinou quase tudo de filosofia, e um tanto de muitas outras coisas por aí. Chasin me ensinou a ler. E com eles, eu eduquei meu pensamento e minha expressão.

Talvez eu tenha tido sorte. Muita gente sofreu e ainda sofre com a morte do Chasin. Eu apenas lamento por não ter aproveitado a oportunidade de sofrer o mesmo. Mas eu tenho a fortuna de cultivar o que ele pensou e escreveu de melhor. Aí, só lamento por quem não leu. Não ouse morrer antes.

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Chasin