Vida depois da morte

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Há quem acredite em vida depois da morte.

É coisa tão tola quanto acreditar que estamos lendo este texto neste exato instante. Fatos se constatam: não há porque acreditar em um fato, a menos que este não seja, de fato, um fato, tal como todo objeto de crença se traveste (nada como o sucesso nadificante do auto-engodo…).

Mas a vida depois da morte é um fato, e você aí é uma evidência deste fato.

Ok, não se tratava de você, mas de alguém que vivia e agora entrou em harmonia com a natureza.

Pois é, virou natureza. Comida de bactéria, talvez uma natureza morta… Ora, nada na natureza se cria ou se perde, tudo se move.

A bactéria é tanto “outro ser” em relação a nós quanto nossa flora estomacal, só que, desta vez, nós é que vamos pro estômago dela.

Portanto, há vida depois da morte.

Ah, não se trata de vida orgânica, mas “vida espiritual”, um Eu que se descola do tecido cerebral e vira éter no além?

A esse respeito, um plus de qualidade: há quem acredite numa vida MELHOR depois da morte.

Buenas, agora não parece algo constatável.

Mas por vezes é!

Tudo depende de quem morre. Em alguns casos, depois que fulano vira éter, todos passamos a viver melhor.

PS. Antes que me acusem de estar sugerindo ou promovendo qualquer coisa que ultrapassa minhas jurisprudências, devo dizer que, apesar de não faltar quem esteja aí fazendo peso sobre o planeta, também é fato que ninguém aqui está em campo, no máximo torce do alto das galerias; o mesmo vale para as sombras dos stalkers, essa gente tão minúscula quanto um salsicheiro de dossiê.

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“Ser Absoluto”: sequer uma idéia

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Me perguntaram por que o Ser Eterno (e nomes congêneres: absoluto, infinito, incondicionado etc.) é uma contradição em termos – de que sequer se consegue fazer idéia.
 
 
 
Ora, o que é isso, um ser?
 
Tudo aquilo que existe, todo e cada ser é uma síntese particular de variadas qualidades: material, extensão, peso, textura, cor, sabor, tamanho, consistência etc. etc.
 
Esses atributos se entificam na forma de um ser, ou coisa, na medida que a coisa se encontra num meio que a determina, enquanto ela também determina as outras coisas ao redor, de modo que o limite que separa e distingue uma coisa de outra é estabelecido na relação entre elas.
 
Cada atributo da coisa é um limite da coisa: a cor azul determina que ali a cor não pode ser não-azul; minha pele e o plástico são limites que fazem com que meus dedos e o teclado não se confundam; etc.
 
Ser é estar em relação com outros seres, e como se trata de um resultado do enredamento contínuo de múltiplas predicações ou qualidades, sua concreticidade fatalmente incidirá sobre os órgãos sensitivos (o raio X é invisível às nossas retinas, mas alguns segundos de exposição a ele são suficientes para constatar sua existência), e/ou também pode ser detectada por instrumentos tecnológicos que estendem o alcance de nossos sentidos, ou ainda de forma indireta, por meio de pistas que sua presença deixa nos arredores, na relação com outros seres.
 
Ser é ser concreto, e assim se faz objeto de outros objetos; nessa relação, todo ser exprime efetividade: todo ser se põe e impõe (com maior ou menor preponderância) sobre os demais.
 
Por isso, todo ser é objetivo, e ser objetivo é ser objeto para outros seres; uma vez que a coisa se impõe diante da materialidade do corpo humano e vice-versa, serão ambos, a princípio, anteriores, exteriores, autônomos e indiferentes à subjetividade, à percepção, à consciência e à idéia.
 
As idéias só possuem efetividade sobre as coisas na medida que orientam a prática material, a atividade sensível, pela qual se projeta para além da consciência e se exterioriza em um meio material: é o produto da ação criadora do trabalho.
 
As idéias mesmas são abstrações dos atributos das coisas, com o que se consegue ter um carro na imaginação sem que tal carro de fato esteja concretamente presente – e por isso não se diz que as idéias existem, ou ao menos não como as coisas. Idéias se formam com alguns atributos, mas nenhum deles de caráter natural, material, físico; tais atributos são formados por signos e seus significados. A idéia “existe” na imaginação ou está plasmada nas coisas, mas ela é pobre diante das coisas, e apenas existe enquanto determinada coisa – o cérebro – a produz.
 
 
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Existir é uma efetivação da síntese de atributos (a coisa) – na medida que ela possui medida (do grego “métron“). Ou seja, limites.
 
Já que a questão era sobre o “ser eterno”, vamos falar do tempo.
 
Um dos limites da coisa está em seu movimento, do qual a nossa percepção extrai a noção de tempo.
 
Essa noção é a de um fluxo de momentos, instantes que, por si mesmos, nada são. Tão logo o agora é, deixa de ser e outro agora toma seu lugar. Na abstração, ilustramos o movimento das coisas como uma passagem por 3 instâncias: do que “ainda não é” pro ser, e deste pro “não é mais”.
 
E a eternidade, o que é? Não é fluxo. Nada envelhece se for eterno. Nada se move. É o instante congelado num presente absoluto. Mas, pra imaginarmos isso, pensamos de forma temporal: um instante que nunca pára de acontecer. Ora: instante, parada, acontecimento, todos estes termos são temporais. Na eternidade não há nada acontecendo, nada se move, nada é; pois ela é a abstração da temporalidade. Abstração que pretende ser absoluta, por isso é impensável, senão em analogia com o tempo, que não é absoluto, mas relativo, limitado.
 
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Santo Agostinho se aventurou a falar disso e nos legou ótimas reflexões; porém, caiu no beco sem saída do subjetivismo, ao afirmar que o tempo não existe nas coisas, mas é produto da consciência.

Não vamos nos estender mais. Vou deixar aqui o grande lampejo ontológico materialista, se me permitem a expressão, do teólogo alemão L. Feuerbach, um antídoto contra toda forma de consciência antropomórfica, subjetivista, mítico-religiosa e idealista, da qual brotam os oxímoros mais inocentes – que, entretanto, passam por profundos pensamentos.

 
 
– “Um ser que não se distingue do pensar, um ser que é apenas um predicado ou uma determinação da razão, é unicamente um ser pensado e abstrato, na verdade, não é ser algum. […] O ser da lógica hegeliana é o ser da antiga metafísica, que se enuncia de todas as coisas sem diferença porque, segundo ela, todos têm em comum o fato de ser. Mas este ser indiferenciado é um pensamento abstrato, um pensamento sem realidade. O ser é tão diferenciado como as coisas que existem. […] Característica da anterior filosofia abstrata é a questão: como é que outros seres, substâncias autônomas e distintas podem agir umas sobre as outras […]? Mas tal questão era para ela insolúvel, porque abstraía da sensibilidade; porque as substâncias, que deveriam agir umas sobre as outras, eram seres abstratos, puros seres do entendimento. O mistério da ação recíproca resolve-se apenas na sensibilidade. Só os seres sensíveis agem uns sobre os outros. […] O entendimento abstrato, porém, isola este ser-para-si como substância, átomo, Eu, Deus – por conseguinte, só pode conectar arbitrariamente o ser para outro. […] Só a determinidade constitui a distinção, a fronteira entre o ser e o nada. Se eu deixo de lado <o que é>, que pode ser ainda este simples <é>?” (Teses Provisórias).

Os problemas dos “Manuscritos Econômico-Filosóficos” da Boitempo

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Jesus Ranieri, tradutor da edição da Boitempo Editorial dos “Manuscritos Econômico-Filosóficos” de Marx, trata os termos “exteriorização”, “objetivação”, “estranhamento”, “alienação” e correlatos (por vezes somos brindados com uma “extrusão” ou “reificação”) de forma problemática, para não dizer outra coisa.

Ranieri diz na Apresentação:

– “Em primeiro lugar, é preciso destacar a distinção sugerida, nesta tradução, entre alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfremdung), pois são termos que ocupam lugares distintos no sistema de Marx. É muito comum compreender-se por alienação um estado marcado pela negatividade, situação essa que só poderia ser corrigida pela oposição de um estado determinado pela positividade emancipadora, cuja dimensão seria, por sua vez, completamente compreendida a partir da supressão do estágio alienado, esse sim aglutinador tanto de Entäusserung quanto de Entfremdung. No capitalismo, os dois conceitos estariam identificados com formas de apropriação do excedente de trabalho e, conseqüentemente, com a desigualdade social, que aparece também nas manifestações tanto materiais quanto espirituais da vida do ser humano. Assim, a categoria alienação cumpriria satisfatoriamente o papel de categoria universal que serve de instrumento para a crítica de conjunto do sistema capitalista.

Na reflexão desenvolvida por Marx não é tão evidente, no entanto, que esse pressuposto seja levado às suas últimas conseqüências, pois os referidos conceitos aparecem com conteúdos distintos, e a vinculação entre eles, geralmente sempre presente, não garante que sejam sinônimos. E é muito menos evidente ainda que sejam pensados somente para a análise do sistema capitalista. Entäusserung significa remeter para fora, extrusar, passar de um estado a outro qualitativamente distinto. Significa, igualmente, despojamento, realização de uma ação de transferência, carregando consigo, portanto, o sentido da exteriorização (que, no texto ora traduzido, é uma alternativa amplamente incorporada, uma vez que sintetiza o movimento de transposição de um estágio a outro de esferas da existência), momento de objetivação humana no trabalho, por meio de um produto resultante de sua criação. Entfremdung, ao contrário, é objeção socioeconômica à realização humana, na medida em que veio, historicamente, determinar o conteúdo do conjunto das exteriorizações – ou seja, o próprio conjunto de nossa socialidade – através da apropriação do trabalho, assim como da determinação dessa apropriação pelo advento da propriedade privada. Ao que tudo indica, a unidade Entäusserung-Entfremdung diz respeito à determinação do poder do estranhamento sobre o conjunto das alienações (ou exteriorizações) humanas, o que, em Marx, é possível perceber pela relação de concentricidade entre as duas categorias: invariavelmente as exteriorizações (Entäusserungen) aparecem no interior do estranhamento, ainda que sejam inelimináveis da existência social fundada no trabalho humano”.

 

A distinção entre alienação e estranhamento é correta, mas por outras razões.

Em primeiro lugar, compreender a alienação como “um estado marcado pela negatividade” não é “muito comum” por acaso. O sentido que Marx dá ao termo, e a cada um dos demais, está claro no uso que faz deles no texto, alterado na tradução em questão: em momento nenhum, o termo alienação pode ser (senão em Hegel) identificado com um ato de “remeter para fora, extrusar, passar de um estado a outro qualitativamente distinto. /…/ despojamento, realização de uma ação de transferência, /…/ exteriorização”.

Resulta daí que Ranieri entende alienação como “momento de objetivação humana no trabalho, por meio de um produto resultante de sua criação”, donde não lhe ser muito evidente que seja pensada “somente para a análise do sistema capitalista”, mas antes lhe parece “ineliminável da existência social fundada no trabalho humano”.

De acordo com a letra de Marx, objetivação e exteriorização de fato são análogos: “inelimináveis da existência social fundada no trabalho humano”, dizem respeito ao ato de tornar objeto o que era apenas idéia, télos, algo que até então só existia na subjetividade. Em uma só palavra: produção.

(É certo que a idéia é determinada “de fora” – de início, enquanto linguagem – e as condições de sua exteriorização são dadas também pelo exterior à cabeça que a pensa, assim como todo o sujeito o é; mas nada disso significa que a idéia está pronta “lá fora” antes do sujeito pensá-la.)

Alienação e estranhamento nada têm a ver com isso. Vejamos primeiro este, por meio do exemplo da religião: ela não nasce da alienação, mas do estranhamento – frente à natureza desconhecida (com a qual, entretanto, os homens têm de lidar, portanto uma natureza francamente hostil) -, e se manifesta primeiramente sob o estágio rústico do mito, “religião natural”, não-institucionalizada e sem escritura.

Posteriormente, se mantém e se fortalece por sob outra forma de estranhamento, não mais diante da natureza, e sim em meio à própria sociabilidade; forma de estranhamento que pressupõe a transformação do trabalho, do produto e das capacidades do trabalhador em mercadorias, donde decorre toda sorte de perversões na entificação do indivíduo e da sociedade. Em suma, pela alienação – que significa, entre outras coisas, tornar alheio; e especialmente: hipotecar, vender. Trata-se de uma “ação de transferência” historicamente muito bem determinada. Por aí se vê que o termo possui um caráter perfeitamente materialista, nem um pouco místico ou metafísico.

Nem todo trabalho é estranhado e/ou alienado – e é justamente resgatar seu caráter genérico e universal a meta da superação do capitalismo pelo comunismo; afirmar o contrário (como certos teóricos “críticos” ou antropólogos pós-racionais fazem) é condenar a humanidade à inautenticidade na qual Heidegger et caterva a atiraram. Com isso, está aberta a porteira para o anti-humanismo que decreta ser o homem um “câncer” da natureza. Acreditar nesses apóstolos do abismo final, e continuar atuando de cabeça baixa no decrépito drama da vida sob o capital, é se esforçar por merecer suas profecias macabras, enquanto fétida e desgraçadamente as confirma.

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Resta apontar dois outros detalhes da (primeira) edição dos MEF pela Boitempo.

Ranieri enxertou no texto o que era uma nota de pé de página: é o primeiro parágrafo da pág. 107 (“A prostituição” etc.), que na verdade é nota na pág. 104, décima linha, após “prostituição universal”. Notem que o enxerto da nota na pág. 107 não faz sentido algum.

E, por fim, Ranieri trocou a ordem dos cadernos do Terceiro Manuscrito. Em vez de 1) Propriedade privada e trabalho, 2) Propriedade privada e comunismo, 3) Necessidades, Produção e Divisão do Trabalho, 4) Dinheiro e 5) Crítica da dialética e filosofia hegelianas em geral, ele re-elencou os três últimos como 3) Crítica da dialética e filosofia hegelianas em geral, 4) Necessidades, Produção e Divisão do Trabalho (traduzido como “Propriedade privada e Carências”) e 5) Dinheiro.

Pode parecer bobagem, mas não é. Marx fecha os MEF com a crítica a Hegel, amarrando toda a crítica anterior, contra a Economia Política. A mudança da ordem desses tópicos, ao contrário, tende a passar uma impressão de aleatoriedade, tornando a crítica à especulação algo estranho ao resto do texto.

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A esquerda na barafunda maquiabólica de Gramsci com Stalin

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Maquiavel foi um dos maiores teóricos, talvez o maior, da prática política.

Seu propósito, seu limite, seu drama e a razão de seu fracasso como ideólogo estão sintetizados na determinação histórica que simultaneamente os explica e caracteriza o pensador florentino enquanto, e contraditoriamente, gênio e retardatário, realista e utópico.

Trata-se do intento de restabelecer a sociabilidade comunal recém-dissolvida no surgimento e consolidação das relações sociais mercantis que constituem a infância feroz do capitalismo, do qual Maquiavel é o primeiro crítico; mas ele ainda está na aurora da modernidade, e só poderia tentar compreendê-la a partir do passado pré-diluviano. É tudo que o momento histórico oferece a ele. Como parâmetro e finalidade de sua tradução e defesa do Estado absolutista – eis o que tem para acreditar poder servir como remédio da corrupção da sociabilidade -, ele elege como ideal a antiga república romana.

É curioso como Gramsci se debruça longamente sobre o pensamento maquiaveliano e, ao mesmo tempo, termine por apresentar qualidades e deficiências análogas.

Gramsci também foi um dos maiores teóricos da prática política – com a diferença de poder ter subido sobre os ombros da História e de pensadores como Hegel, Marx e o próprio Maquiavel; uma vantagem que, entretanto, faz deste último um pensador ainda maior.

Gramsci nos oferece uma profunda e aguda compreensão do Estado capitalista e da política moderna – léguas à frente do marxismo oficial da época, bem como dos vanguardistas. Seu defeito, porém, está justamente aí. Não que Gramsci deixe escapar de suas análises, ou ao menos de sua vista, as categorias da sociedade civil; mas elas perdem, um bocado ou totalmente (o que por ora vou ficar devendo uma avaliação mais cuidadosa), a força preponderante sobre o Estado, e Gramsci se torna mais próximo de Maquiavel à medida em que se distancia de Marx, justamente quanto ao que caracteriza a ruptura e crítica filosoficamente revolucionárias deste contra o idealismo de Kant e Hegel e também o materialismo francês e de Feuerbach.

Embora Gramsci fosse um crítico do stalinismo, não é casual que seja reivindicado como teórico da esquerda e, paralelo a isso, seja amalgamado a uma prática forjada pela política do partido stalinista, ainda hoje – adivinhem – hegemônica na esquerda.

Alguns diriam que o resultado dessa barafunda entre insuficiência teórica e prática oportunista é uma esquerda maquiavélica. Mas, para que de fato conseguisse chegar a tanto, seria preciso à esquerda muito menos vulgaridade e muito mais Maquiavel; e assim, quem sabe, começar a se livrar de sua realpolitik e se tornar realmente de esquerda.

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mach - gramsci