Epistemologia: glacê crítico para decorar ideologias burguesas

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Epistemologia é a área da Filosofia que mais produz asneiras sob a crença de estar pensando de maneira “crítica”.

É o playground predileto dos filósofos da burguesia, de Descartes a Popper et caterva.

Quanto mais absurda e mais enrolada em pseudoproblemas – tais como “de que modo o cérebro, que é uma coisa material, se relaciona com a mente, que é imaterial?”, donde o ceticismo, o relativismo, a negação da razão, a afirmação da Vontade do Führer, a defesa do liberalismo etc. -, mais “crítica” ela se pretende.

Algumas declarações típicas surgiram num debate, e como elas estão adentrando o senso comum, achei que valia a pena rabiscar uns comentários:

– “[É falso] acreditar que o papel da ciência é buscar uma essência ocultada pelas aparências que, se descoberta, proporcionaria um conhecimento definitivo da realidade em sua totalidade”.

Sim, a ciência busca descobrir a essência ou lógica do objeto por sob sua aparência; mas não tem nada a ver com adquirir um “conhecimento definitivo da realidade em sua totalidade” (de fato, um papo estranho). A pessoa que afirma ser a concepção de ~ciência como descoberta~ um “totalitarismo epistemológico” acusa um espantalho; pois pensa que o objeto (seja qual for) a ser descoberto é inerte, donde poderíamos desvelar suas camadas até chegar à sua essência íntima e estável e, então, ter um saber absoluto acerca dele. Ora, isso o “crítico” só pode pensar estacionado à frente da carroça de Parmênides, dizendo amém ao infantilismo ontológico da metafísica. Pois nada que existe está estagnado: tudo está em processo, e quando conhecemos algo da coisa, ela já está adquirindo novas determinações. Ontologicamente, não há como ter “conhecimento definitivo da realidade em sua totalidade”. Isso é conversa de sacerdote que imagina possuir o whatsapp de Deus.

– “Há um caráter falseável de toda teoria que almeja a descrição da realidade. Não existe “conhecimento verdadeiro”. O que existe é conhecimento com maior capacidade de sobrevivência a críticas”.

Eis o que pensava Popper. Ele acreditava que teorias não poderiam ser verificadas de forma definitiva, mas acreditava que elas poderiam ser falsificadas assim. Enquanto não fossem falsificadas e fossem resistindo aos testes (e enquanto fossem úteis), ficavam no pódio (ou “paradigma”). O problema dessa conversa definitivista-ao-contrário é que os procedimentos que testam a teoria estão todos embasados em outras teorias, de modo que a falsificação de uma teoria é que pode ser falsa. Em suma, teorias não são verificáveis e nem falseáveis de forma definitiva. Aliás, quem é que está preocupado com isso?

O que mede o caráter “definitivo” do conhecimento não é nenhum laboratório de falsificacionismo, mas sim a necessidade humana e o quanto uma teoria a satisfaz. Por exemplo: a lógica dos agentes infecciosos conhecidos como “vírus” deixou de ser conhecida de modo “definitivo” tão logo o HIV se tornou um problema pandêmico e revelou à ciência que sua lógica era especificamente mais complexa que até então se sabia sobre os vírus. Mesmo assim, tal conhecimento satisfaz a necessidade de combater a maioria deles, e é ele que pode servir de base para decifrarmos a imensa variabilidade genética, o rápido ciclo de replicação e de mutação e demais propriedades específicas do HIV (sobre o qual já se sabe bastante coisa).

– “Todo contato que temos com a realidade já produz um objeto mental construído pelo nosso entendimento, portanto, não é correto afirmar que há uma primazia do objeto em relação ao sujeito”.

Kant regurgitado até virar alfafa sub-idealista. “Todo contato que temos com a realidade ~~produz~~ um objeto mental ~~construído~~ pelo nosso entendimento”. O objeto mental é produzido no contato que temos com a realidade ou ele é construído pelo nosso entendimento? Se é preciso haver contato com a realidade antes de imaginarmos o objeto, é óbvio que há uma primazia da realidade… e lá se vai a tentativa de dizer que a realidade é construída pelo sujeito (uma “crítica” que se desenvolve ainda no maternal).

– “Nossa mente constrói regularidades através de interpretações, não apenas é passiva de uma regularidade dada do objeto”.

Não é “apenas” passiva de uma regularidade dada pelo objeto, mas então reconhece que a regularidade é dada por ele; que, aliás, é o único critério existente pra avaliarmos as interpretações que a mente constrói.

– “A lógica das coisas não é algo dado na realidade, mas sim, construída por uma mente capaz de ‘logicalizar’ [sic] a realidade”.

Uma mente que fornece à realidade a sua lógica! Será que isso é filosofia, ou é religião? Estamos falando de cientistas ou de Deus? De fato, a lógica das coisas não está dada a nós, mas muito menos a construímos. Ela é extraída da realidade (das coisas reais) por meio da investigação, e então é decifrada e, por fim, descoberta. Como disse Marx, se a aparência das coisas correspondesse à sua essência [ou: se a lógica das coisas estivesse naturalmente exposta aos nossos olhos nus], a ciência não seria necessária. Se for pra brincar de “inventar lógicas”, é bem melhor fazer ficção científica que fazer da filosofia e da ciência uma palhaçada que abre alas para o irracionalismo e o anti-humanismo burgueses.

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mas consegue parir Schopenhauer, positivistas etc

Um diálogo maiêutico sobre eurocentrismo e epistemologia com uma acadêmica pós-mod

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Típica figura acadêmica veio me dizer que iria participar de um evento sobre “epistemologia do sul”.

Perguntei: o que é uma “epistemologia do sul”?

Ela respondeu: “em princípio, são críticas às narrativas do colonialismo eurocêntrico”.

– E o que é eurocentrismo?

– “Eurocentrismo é a centralização da ideia de pensamento tal qual ele se forma e se faz na Europa, é o pensamento enquanto centralidade, o chamado pensamento único, dominante, hegemônico”.

– Vamos com calma. Qual idéia de pensamento???

– “A de dominador”.

– Onde isso aparece na epistemologia?

– “Na epistemologia funciona pelo conceito de natureza e no que pode o homem sobre a natureza”.

– Bom, primeiro temos de ver se essa epistemologia eurocêntrica é realmente um constructo cultural de um continente com enormes diferenças culturais em seus tantos povos distintos, se ela é “interesseira” (política) ou não. Daí veremos o que é a tal “crítica ao eurocentrismo” e quão crítica ela é.

– “A crítica ao eurocentrismo passa pela filosofia da natureza, pelo romantismo, pela hermenêutica…”.

– Pra começar, natureza em epistemologia não é a natureza que também chamamos de universo; natureza aqui significa essência, um grupo de atributos fundamentais pra constituir o conceito de um objeto. Nada tem de dominação nisso.

– “O que é essência? Tempão que não ouço isso”.

– Essência: grupo de atributos fundamentais pra constituir o conceito de um objeto.

– “Fundamentais”.

– Sim.

– “Qual o prazo de validade disso?”

– O dia que não mais houver lembrança do objeto nas culturas. Mas deixe-me dar um exemplo: o que é uma mesa? A cor da mesa é um atributo necessário para definir o que uma mesa é? Dizer o que é uma mesa, de modo que o seu ouvinte não confunde isso com uma cadeira ou uma cama, é dizer com precisão o conceito de mesa, que expressa o grupo de atributos fundamentais pra dizer o que é mesa. A cor não é um deles.

– “Vou ver a definição no google e como dizer isso”.

– Eu fui ao Aurélio procurar saber o que é mesa, mas a definição é horrível… então eu mesmo fiz o conceito aqui. Traz aí a do google e depois eu digo a minha.

– “Eu diria que o google traz o contrário do que diriam os antropólogos… móvel composto de um tampo horizontal, que se destina a fins utilitários: refeições, jogos, escrita, costura, apoio etc”.

– Definição ruim, mas melhor que a do Aurélio. Eu digo que mesa é um móvel de superfície plana, material sólido consistente, geralmente sustentado por um ou mais pés (mas tb pendurado por linhas na parede ou teto), cuja função é sitiar refeições, reuniões, estudos etc.

– “É mais uma metáfora do que uma metonímia… os antropólogos dizem que a mesa é um lugar de conversar, que as refeições foram colocadas à mesa pela sociedade ocidental”.

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PS. Talvez alguém diga que eu não expressei o conceito de mesa com precisão, pois eu disse que é um móvel “~geralmente~ sustentado por um ou mais pés (mas tb pendurado por linhas na parede ou teto), cuja função é sitiar refeições, reuniões, estudos ~etc~”.

Há mesas em forma de cubo ou tocos de árvore, sem pés nem penduradas, com fins ritualísticos, necrológicos ou orgiáticos, entre muitos mais.

Mas o que mede a precisão do conceito não é um rol dos tantos atributos que se pode auferir do que existe e do que irá se inventar, bem como dos tantos usos conhecidos, costumeiros, inéditos e imaginários, e sim do tipo e lugar de conversa e do interlocutor em que se comunica o conceito.

Nada disso é pós-modernismo, mas sim uma formulação baseada na ontoprática, na observação da cotidianeidade das regras de uso da linguagem. Isso é o último Wittgenstein, mas já aparece antes em Marx.

 

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O indivíduo em luta - na literatura clássica, moderna e pós-moderna
progresso do estranhamento

Ateísmo vs. Agnosticismo

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Facebucking pela rede (anti-)social afora, acabei entrando numa página de ateus e esbarrando numa conversa recheada de comparações entre o “ateísmo gnóstico” – ou ateísmo “forte”, que seria a afirmação da certeza da inexistência de deus – e o “teísmo gnóstico” – ou, simplesmente, : afirmação da certeza da existência de deus.

Os argumentos diziam que estas “certezas” são meras crenças, pois não há como provar cientificamente nem a existência, nem a inexistência de deus.

Postos nesses termos, até que faz o debate parecer ter sentido.

(Vejam que, portanto, o ateu “forte”, o ateu pra valer, é um crente.)

Contra o gnóstico, seja ateu ou crente, se ergue vaidosamente a figura do humilde agnóstico: trata-se do ateu ou crente que afirma sua dúvida acerca de sua capacidade de conhecimento e de qualquer possibilidade de se obter certezas, ao menos nesse assunto.

(E, assim, fica no ar a conclusão de que o crente “fraco”, ou teísta cético, é um ateu.)

Como se pode notar, tudo aqui gira em torno dos sujeitos e da capacidade humana de conhecimento das coisas.

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Sejamos audaciosos: vamos procurar ver como a questão pode ser apreendida do ponto de vista das próprias coisas, ou melhor, da realidade das coisas, que é ou deve ser a mesma realidade dos sujeitos.

Antes disso, devemos lembrar que a pergunta acerca da existência – de deus e de tudo o mais – não pertence ao âmbito de nenhuma ciência, mas sim da ontologia. Nenhum químico, nenhum geógrafo, nenhum matemático coloca em questão o que seja a realidade, pois não se trata de assunto da química, da geografia ou da matemática, etc. Cientistas têm mais o que fazer.

Nosso assunto aqui é filosófico.

Para ser breve como um post de facebook: por definição, o que existe é objetivo, efetivo e repleto de determinações (i.é., concreto), donde possuir aquelas pelas quais se faz sentir. P.ex.: o raio X, tal como o ar, é invisível, mas é possível detectar sua existência através de sua ação, seja por meio da impressão de chapas, seja por observar seus efeitos no desenvolvimento de tumores. Em outras palavras, ele apela aos nossos sentidos, ainda que nossa limitada visão não capte senão os indícios de sua existência.

Nota bene: não estou entrando em nenhuma problemática gnosiológica, mas apontando para a ocorrência de uma relação objetiva que se instaura entre a coisa e o nosso próprio ser (a partir da qual, e somente então, se põe a questão da possibilidade de conhecê-la).

Em outras palavras, a objetividade daquilo que existe está justamente nesse potencial (e na efetivação deste) em constituir uma relação com as outras coisas e conosco também. Ora, isso é algo que se impõe a nós; ou seja, não depende de nenhuma subjetividade para existir e se estabelecer. Portanto, não se trata de uma questão de (limites do) conhecimento.

Alguém pode, e vai, perguntar: é possível tratar do ser sem, ao mesmo tempo (ou antes), tratar do conhecimento do ser?

Eis que entra em cena a filosofia moderna ou, se se quiser, burguesa. A partir da questão acima, ela põe a subjetividade como determinante da objetividade (“ego cogito, ergo sum qui sum” – semelhanças com a Bíblia podem ser apenas coincidências), quer dizer, subordina a questão ontológica à gnosiologia/epistemologia ou simplesmente a deixa de lado.

Assim é que o ateísmo passa a ser um agnosticismo, isto é, que se funde e se confunde com a problemática gnosiológica.

Em outras palavras, o que era questão de bom senso materialista, fincado na objetividade da própria vida humana em sua prática cotidiana, se torna especulação idealista acerca do acesso ou da barreira postos ao pensamento sobre a realidade.

O agnóstico tem dúvidas acerca da realidade porque tem uma crença inabalável na idéia de que a consciência é o ponto de partida para a verdade. O último resquício de sanidade de Descartes, as idéias adventícias, é ultra-remastigado até virar solipsismo em Berkeley, ceticismo em Hume, bolha de fenômenos em Kant e positivismo depois. O mundo girando em torno do umbigo do idealismo.

Isso não é senão o abandono do ateísmo mesmo.

Se ainda existe ateísmo, é graças ao materialismo francês e seus herdeiros; pero no hay chances de entrar em detalhes sobre essa história aqui.

Interessa é notar que hoje o ateísmo, ateísmo in iure et facto, se divide em dois: um que chega e estaciona em Darwin, julgando a sociedade humana como uma extensão da natureza (that’s the World WILD Web, e dá-lhe biologismo por todos os lados – via de regra, é o ateísmo que se manifesta ideologicamente no interior do espectro político de direita); enquanto o outro vai até Marx e trata a sociedade humana como uma nova forma de ser, uma emergência inédita de nova realidade em meio à natureza, sem se confundir com ela.

Graças ao seu materialismo grosseiro, ignorante e inconseqüente, a primeira forma de ateísmo coqueteia livre e serelepe com o idealismo, donde frequentemente se desfazer em agnosticismo.

Enquanto isso, a outra forma – pode parecer surpreendente – não visa destruir o teísmo, mas compreender sua gênese e razão sociais de ser; quando muito, lutar contra seu aspecto ideológico na arena da política, i.é., combater a idéia ali onde ela se faz ação. Pois ele entende que o teísmo, a consciência mítica, a religião e o idealismo não se auto-sustentam, mas existem por conta de uma determinada forma de sociabilidade em que o estranhamento se coloca na relação dos indivíduos com a natureza e especialmente entre si próprios.

De modo que, em verdade vos digo, não é tanto um contrassenso almejar, e até conseguir, provar a não-existência de deus, desde que tal prova tenha caráter ontológico, e não científico. Entretanto, a idéia de que o mundo muda a partir da crítica – seja lá ao que for – é ingênua. Não é o ateísmo, a ontologia ou a ciência que irão acabar com a consciência religiosa das pessoas, visto que essa consciência provém do mundo em que elas vivem; afinal, “a consciência” nada mais é que a consciência que temos do mundo. Ora, o mundo atual demanda a todos nós que anestesiemos nossa sensibilidade, e isso se consegue não apenas com química, mas também com mitologia (e ambas rendem muito dinheiro, na medida que muitos são os que atendem a essa carência de auto-castração, a esse desejo de desdesejamento, visando satisfazer as suas próprias necessidades humanas cortando estas em sua raiz). Deus é, portanto, antes de tudo um produto e um problema sociais.

Pois o mundo atual é o mundo da sociabilidade do capital ladeira (ou abismo) abaixo, rumo à autodestruição. Isso é o que explica porque, apesar de tanto desenvolvimento científico alcançado, estamos regredindo cada vez mais em termos sociais e ideológicos, ou melhor, em termos humanos.

Este entendimento, como se pode notar, termina por ultrapassar o próprio ateísmo e se torna entendimento histórico – “ciência da história”, nos termos de Marx; no senso comum acadêmico, marxismo (um termo que se torna tão popular quanto maior a ignorância a seu respeito).

(Confira os textos “Racionalidade e falsidade socialmente necessária da Fé” e “A importância do Materialismo para a práxis de esquerda“.)

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Enfim: o ateísmo não é a crença na inexistência de deus, derivada de uma crença na possibilidade de se provar (ainda mais por meio da “ciência” – qual delas?) que deus não existe. Ao contrário, ele simplesmente descarta tal “hipótese” como fantasia infantil.

E não é exatamente da mesma forma que qualquer um lidaria com o “problema” da existência de outros tantos “seres imaginários”, tais como duendes? Mas se o agnóstico alegar que esta seria uma “falácia da falsa analogia”, uma vez que duendes são idéias “materiais” (i.é., originados numa composição elaborada pela imaginação de figuras extraídas da experiência sensível, como as de anões, orelhas pontudas, cor verde etc.), enquanto Yahweh é metafísico, resultante de nossas “falhas cognitivas” e de nossa “necessidade de respostas”: tanto pior pra Yahweh e quaisquer outras “entidades metafísicas”, por tudo isso ainda mais absurdas que duendes.

(Para discutirmos o que é isso, a idéia de deus, e como se fabrica tal idéia, confira também: “Você não pode provar que Deus não existe nem o Minotauro“, “Perfeição e Existência de Deus segundo Descartes: uma prova falaciosa“, e ainda “Ciência e Religião: Diádocos da Alienação“).

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Para fechar o post, transcrevo e debulho um trecho do comentário de um dos debatedores – que procurava distinguir, mas também relacionar, ateísmo e agnosticismo, e justificar ambas as posições. O sublinhado é meu:

– “Não sei da existência de algum deus (agnóstico) ao mesmo tempo em que não vejo motivos pra acreditar que algum exista (ateu)“.

Perfeito. Justamente porque “não vejo motivos pra acreditar que algum deus exista” (e isso decorre do fato de a posição ateísta partir da realidade na qual, por meio da qual e com a qual nós existimos; e somente esse, é evidente, pode ser um ponto de partida racional), não faz nenhum sentido se indagar acerca das possibilidades de saber da existência de algum deus – tal como faz a posição agnóstica, idealista que é, ao abstrair a realidade e a vida do próprio especulador de idéias.

Donde o agnosticismo, ao acreditar que a questão se dilui na “incapacidade humana” de provar isso ou aquilo, não se põe exatamente “em cima do muro” entre ateus e crentes, mas sim na pocilga da tibieza – lugar próprio de toda sorte e azar de covardes, conciliadores, sicofantas e demais “apartidários” -, o que é pior que estar entre ateus de direita; pois lhe apraz roçar a cachola no lamaçal ridículo dos pseudoproblemas de um pensamento isolado da prática.

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cardápio do ateísmo agnóstico
Eis aí o cardápio eleitoral da gnosiologia: escolha seu pastor.

Kant: Copérnico Frankenstein

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Outro dia eu vi um artigo sobre Kant em iorubá na Wikipedia e falei umas boboquices a respeito. Hoje, meu amigo Igor puxou o assunto, e aí eu resolvi escrever essa notícula sobre o moço.

Como é que Kant faz sua copérnica filosofia? Simples: ele pega Platão e deforma o aristocrata até ele virar um burguês.

Na falta de matéria prima autenticamente filosófica – isto é, grega -, Kant tem de se haver com os xing-lings modernos.

Então, pra começar a conversa, ele cata o cogito cartesiano e hipostasia o que já era puro clorofórmio, até lhe caber o termo “transcendental”. Já rola de sentir uma onda-tipo de sintonia com o kósmos.

É o sujeito metafísico. Eu Absoluto, A=A, Representação Mundial, Vontade de Potência, todas essas e demais baboseiras do idealismo alemão se alimentam do “ergo sum” inflacionado em “ego sum qui sum” – e posteriormente efetivado no “eu sou o que sou, e isso é tudo o que eu sou”, no feeling and soul, neither one nor other, “eu sou o marinheiro Popeye”.

Mas Kant não é apenas um Descartes intoxicado de espinafre enlatado. O sagaz relógio de Königsberg também flertava com o despertador empirista de Dùn Èideann (a.k.a. Edinburgh), e é aí que entra Platão: o beato ateu prussiano se inspira na mistura de Parmênides e Heráclito que o destemido Arístocles de Largas Omoplatas realizou em seu doutorado… uma façanha que rendeu a este um puta dum pito da banca na hora da defesa: onde já se viu tamanho ecletismo? Não pode!

Só tem que o nobre ateniense não era nenhum grosseiro, e sambou em plena apologia de sua tese. Demonstrou que suas Idéias eram autênticas crias do lógos efesiano e da alétheias eleata. Movimento e paramento eram fáceis de conciliar: aqui, a razão; lá, a sensibilidade. É o Tcham!

Modernoso, manolo Kant não pode pensar suas próprias idéias do jeito que Platão fez (e Hegel fará depois, ao parir a “superjetividade” alemã – pois acreditava na Bíblia): como realidades anteriores e determinantes da subjetividade. Seguindo Cartesius e Rock Hume (que por sua vez era Francisco Toucinho e João Fechadura levados à sério), nosso herói transcendental mete o lógos na cabeça e faz uma gororoba filosófica deveras audaz, ao consubstanciar o racionalismo gaulês – que vinha com garantia da fábrica de acesso claro e evidente à alétheias – e o ceticismo bretão do empirismo abstrato, que é um proto-positivismo sem as ilusões dos netos do próprio Kant.

Resultou no Frankenstein “revolucionário”, Copérnico de trás pra frente: a subjetividade é uma ilha autônoma e independente (tal como o próprio Cogito, o solipsismo berkeliano ou as homeomerias leibnizianas, assentados no céu do deus matemático cartesiano ou na natureza spinozista, et demais variações), pois a realidade é inacessível. Mas ela existe! E determina, sem deixar indícios, aquilo que os filtros estéticos do sujeito levam para a lógica meter numa fôrma e tals. Em uma palavra, agnosticismo. Sei que nada sei, mas isso é fenomenal e já me basta. Passo importantíssimo para aprofundar ao limite do absurdo o abismo em que Hume já havia se hospedado.

Kant faz isso de forma tão competente que mal dá pra perceber o quão artificial é. Mas Fichte, o oligofrênico, manjou que a parada tava sinistra e foi fazer a barba do Platão burguês com sua Gillette de Ockham: se essa porra de coisa-em-si é incognoscível, pra que ela serve então? Corta.

Houvessem os alemães importado o bom-senso do Renato Cartésio, talvez Fichte tivesse perguntado: como é que pode haver novo conhecimento, se ele é constituído de idéias já presentes em nossas cabeças, ao mesmo tempo que se afirma uma determinação dos fenômenos por uma realidade que não deixa nenhuma impressãozinha digital como pista para nós? Se tem algo a se conhecer nessa história toda, é justamente a coisa-em-si.

Pois, enquanto Kant duvida dessa possibilidade, até mesmo os bois estão ruminando a coisa-em-si no campinho logo ali.

Hegel vai ter de levar esse papo até o seu fim. Valeu, jovem stuttgartiano! Você superou mesmo o dualismo sujeito x objeto com seu “idealismo absoluto”. Já seria um adeus a Kant. Pena que os bastidores da filosofia não se ocupam de nenhum lógos ou alétheias.

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kant óculos