Uma nota sobre o ativismo da crítica à linguagem

.

Certas ideologias afirmam que o mundo humano é, acima de tudo, simbólico – e, por isso, é vital combater as opressões no âmbito da linguagem. No limite, o mundo se reduz a ser mundo das idéias.

A centralidade do símbolo o torna portador do significado, e a linguagem se reduz a uma mera articulação das palavras.

Vejamos a coisa na prática através de alguns exemplos. Se você fala para alguém “tomar no cu”, você na verdade está sendo homofóbico, sugerindo que a pessoa deva abrir a torneira do esfíncter e sorver o maná que dele há de jorrar.

Se você chama alguém de “filho da puta”, você na verdade está sendo misógino, denegrindo (ou declarando, dependendo do sentido de seu racismo) a nobre atividade, ou trabalho, de uma mulher que tristemente não pôde contar com a possibilidade de fazer um aborto alegando ter ocorrido um insalubre acidente.

Se você cumprimenta alguém dizendo “bom dia”, você na verdade está sendo metafísico, enunciando uma avaliação acrítica das condições cronológicas de instantes em ligeiro e constante perecimento.

Assim é que se propõe uma nova “interpretação”, mais “ativista” e “crítica”, cuja “compreensão” do mundo leva a empoderada e auto-suficiente vontade à pretensão de transformá-lo por meio da substituição dos símbolos.

Os filósofos se limitam a ensinar aos simbólicos ativistas a fazer interpretações críticas, e os limites de tal compreensão interpretacionista se mostra no fato da crítica partir da redução dos significados da linguagem aos termos que ela apenas vincula, para então emendar um ativismo que se contenta em gourmetizar as coisas cobrindo-as com o verniz parlapatório dos eufemismos.

Assim sendo, não chame a puta de “puta”, chame-a de “escort”. Não diga “vá tomar no cu”, diga “vá receber no terceiro olho”. Não fale “favela”: respeite a “comunidade” do constrangimento mútuo! Etc.

O policiamento da boa moral dos símbolos é a essência da atividade crítica que instaura a novilíngua responsável pela revolução na vida da puta, nas pregas do cu alheio e no esgoto a céu aberto que desce morro abaixo.

Por fim, também não se deve dizer “bom dia”, diga “boa meteorologia”. Mas, antes que eu me esqueça, vá se foder, você e seu ativismo crítico, na puta que te o pariu – com o perdão da má linguagem!... 😄

.

picasso cubismo

Radicalidade: moral e inteligência verdadeiramente humanas

.

Porque tantas críticas à esquerda? Será que eu sou lateral-esquerdo do time da direita?

Não.

Fazer crítica à direita é o feijão com arroz, na medida que ela mesma já se autodesqualifica, ainda que a crítica seja necessária quando o óbvio precisa ser mostrado nas fuças dos inocentes (o que tem sido o caso há muito tempo, como viu Brecht).

A crítica à esquerda, na medida que ela pretende ser a representação política da luta pela emancipação dos trabalhadores, mas não faz jus a tal pretensão, deve ser implacável, de rigor e radical – por uma questão de honestidade teórica e prática para com os fins pretendidos; tão implacável, de rigor e radical quanto a crítica ao modo de vida burguês.

Radicalismo não é sectarismo ou dogmatismo, e sim a posição mais coerente e consequente com a verdade da necessidade de vida humana autêntica

Ser radical é ir à raiz das questões. Quem não é, bóia na superfície – e nada é mais conveniente, não só porque é fácil, mas porque as aparências enganam.

Assim como o reconhecimento dos princípios morais não faz necessariamente alguém ser um moralista, afirmar a existência de verdades nem sempre faz de alguém um partidário do dogmatismo.

Aliás, se “dogma” significa “verdade inquestionável”, o reconhecimento da validade de alguns “dogmas” – você pode abstrair estas aspas sem nenhum problema – é simplesmente um dever trivial (intelectual e moral, teórico e prático) de quem possui córtex cerebral.

Por exemplo, contestar algo como a verdade da afirmação “verdades existem” não faz de um sujeito o campeão da crítica, mas sim da pura e sórdida burrice.

Ater-se a princípios morais ou dogmas, na crença de que basta “desdobrá-los” e/ou “aplicá-los” nos fatos concretos para compreendê-los, eis o que produz moralismo e dogmatismo; eis aí a mistificação (do que era razoável) que merece ser alvo da crítica.

Todo crítico é um relativista, mas nem todo relativista é um crítico. A diferença entre eles é que o crítico só é capaz de fazer a crítica porque parte do reconhecimento de um critério, e faz a relação das coisas com ele; já o relativista é aquele que faz “crítica” do critério e, por isso, relativiza tudo, de modo a cair no relativismo absoluto – donde este relativista se mostrar um absolutista, exatamente o que ele imaginava se opor.

Um cético só se faz importante para o saber e para a ação na medida que reconhece verdades das quais ele parte; ceticismo absoluto é dogmatismo.

A propósito: nem todo “ismo” é abstrato, nem toda crítica é concreta. A crítica aos “ismos em geral” é, ela mesma, um… criticismo.

Nem tudo que é simples possui a virtude da clareza; por vezes, possui apenas a pobreza da simploriedade.

Pois a realidade é complexa; mas nem todo pensamento complexo é verdadeiro. Por vezes a dificuldade da idéia reside tão somente em sua falta de conteúdo e de racionalidade.

Tergiversação, rodeios e fanfarronice são formas da falsidade, ou melhor, de travestir esta com a aparência da erudição, a ostentação do acúmulo de “capital cultural”, reles manipulação mercantil de vocábulos e cultivo academicista de erva daninha nos vasos da auto-ilusão.

Donde a honestidade intelectual ser revolucionária. À esquerda jamais caberia edulcorar o discurso para este se tornar palatável, via simploriedade e eufemismos. Mas, enquanto seus fins são políticos e a política não lhe servir apenas enquanto um meio, toda crítica a ela deve ser feita e ainda será pouca. 

A História não absolverá os covardes.

.

 

revolucao

 

Epistemologia: glacê crítico para decorar ideologias burguesas

.

Epistemologia é a área da Filosofia que mais produz asneiras sob a crença de estar pensando de maneira “crítica”.

É o playground predileto dos filósofos da burguesia, de Descartes a Popper et caterva.

Quanto mais absurda e mais enrolada em pseudoproblemas – tais como “de que modo o cérebro, que é uma coisa material, se relaciona com a mente, que é imaterial?”, donde o ceticismo, o relativismo, a negação da razão, a afirmação da Vontade do Führer, a defesa do liberalismo etc. -, mais “crítica” ela se pretende.

Algumas declarações típicas surgiram num debate, e como elas estão adentrando o senso comum, achei que valia a pena rabiscar uns comentários:

– “[É falso] acreditar que o papel da ciência é buscar uma essência ocultada pelas aparências que, se descoberta, proporcionaria um conhecimento definitivo da realidade em sua totalidade”.

Sim, a ciência busca descobrir a essência ou lógica do objeto por sob sua aparência; mas não tem nada a ver com adquirir um “conhecimento definitivo da realidade em sua totalidade” (de fato, um papo estranho). A pessoa que afirma ser a concepção de ~ciência como descoberta~ um “totalitarismo epistemológico” acusa um espantalho; pois pensa que o objeto (seja qual for) a ser descoberto é inerte, donde poderíamos desvelar suas camadas até chegar à sua essência íntima e estável e, então, ter um saber absoluto acerca dele. Ora, isso o “crítico” só pode pensar estacionado à frente da carroça de Parmênides, dizendo amém ao infantilismo ontológico da metafísica. Pois nada que existe está estagnado: tudo está em processo, e quando conhecemos algo da coisa, ela já está adquirindo novas determinações. Ontologicamente, não há como ter “conhecimento definitivo da realidade em sua totalidade”. Isso é conversa de sacerdote que imagina possuir o whatsapp de Deus.

– “Há um caráter falseável de toda teoria que almeja a descrição da realidade. Não existe “conhecimento verdadeiro”. O que existe é conhecimento com maior capacidade de sobrevivência a críticas”.

Eis o que pensava Popper. Ele acreditava que teorias não poderiam ser verificadas de forma definitiva, mas acreditava que elas poderiam ser falsificadas assim. Enquanto não fossem falsificadas e fossem resistindo aos testes (e enquanto fossem úteis), ficavam no pódio (ou “paradigma”). O problema dessa conversa definitivista-ao-contrário é que os procedimentos que testam a teoria estão todos embasados em outras teorias, de modo que a falsificação de uma teoria é que pode ser falsa. Em suma, teorias não são verificáveis e nem falseáveis de forma definitiva. Aliás, quem é que está preocupado com isso?

O que mede o caráter “definitivo” do conhecimento não é nenhum laboratório de falsificacionismo, mas sim a necessidade humana e o quanto uma teoria a satisfaz. Por exemplo: a lógica dos agentes infecciosos conhecidos como “vírus” deixou de ser conhecida de modo “definitivo” tão logo o HIV se tornou um problema pandêmico e revelou à ciência que sua lógica era especificamente mais complexa que até então se sabia sobre os vírus. Mesmo assim, tal conhecimento satisfaz a necessidade de combater a maioria deles, e é ele que pode servir de base para decifrarmos a imensa variabilidade genética, o rápido ciclo de replicação e de mutação e demais propriedades específicas do HIV (sobre o qual já se sabe bastante coisa).

– “Todo contato que temos com a realidade já produz um objeto mental construído pelo nosso entendimento, portanto, não é correto afirmar que há uma primazia do objeto em relação ao sujeito”.

Kant regurgitado até virar alfafa sub-idealista. “Todo contato que temos com a realidade ~~produz~~ um objeto mental ~~construído~~ pelo nosso entendimento”. O objeto mental é produzido no contato que temos com a realidade ou ele é construído pelo nosso entendimento? Se é preciso haver contato com a realidade antes de imaginarmos o objeto, é óbvio que há uma primazia da realidade… e lá se vai a tentativa de dizer que a realidade é construída pelo sujeito (uma “crítica” que se desenvolve ainda no maternal).

– “Nossa mente constrói regularidades através de interpretações, não apenas é passiva de uma regularidade dada do objeto”.

Não é “apenas” passiva de uma regularidade dada pelo objeto, mas então reconhece que a regularidade é dada por ele; que, aliás, é o único critério existente pra avaliarmos as interpretações que a mente constrói.

– “A lógica das coisas não é algo dado na realidade, mas sim, construída por uma mente capaz de ‘logicalizar’ [sic] a realidade”.

Uma mente que fornece à realidade a sua lógica! Será que isso é filosofia, ou é religião? Estamos falando de cientistas ou de Deus? De fato, a lógica das coisas não está dada a nós, mas muito menos a construímos. Ela é extraída da realidade (das coisas reais) por meio da investigação, e então é decifrada e, por fim, descoberta. Como disse Marx, se a aparência das coisas correspondesse à sua essência [ou: se a lógica das coisas estivesse naturalmente exposta aos nossos olhos nus], a ciência não seria necessária. Se for pra brincar de “inventar lógicas”, é bem melhor fazer ficção científica que fazer da filosofia e da ciência uma palhaçada que abre alas para o irracionalismo e o anti-humanismo burgueses.

.

190039_257188974410541_1204406647_n
mas consegue parir Schopenhauer, positivistas etc

O discurso pós-moderno enquanto ideologia do opressor

940959_756961114447680_1480331524037761059_n.

A imagem que ilustra este texto é uma crítica, ou antes um sarcasmo, a um certo discurso pretensamente emancipador, mas abstrato, subjetivista e especulativo, que circula por aí em movimentos libertários, esquerdistas, identitários etc.

É o discurso do indivíduo isolado cujo umbigo pretende ser parâmetro do que é a realidade. Ou seja, não existe mais verdade objetiva e universal, relativizada e tornada dependente das “narrativas” dos sujeitos.

Porém, ao criticarmos esse discurso “do sujeito”, talvez devêssemos lembrar que há sujeitos oprimidos por trás dele. E também que o discurso de um sujeito, especialmente o de baixa auto-estima, é embrenhado de identificação e afeto (uma vez que certamente ele crê no valor de verdade ou validade do que diz – mesmo quando afirma que “a verdade não existe” etc -; donde, por meio dele, guiar sua prática), o que torna delicada a situação da crítica.

Há ainda que lembrar o estranho costume moderno de se pensar em “autoria” ou propriedade privada de idéias, graças ao qual os indivíduos tratam egocentricamente uma opinião como um filho sob sua posse absoluta, não importa quão “diferente” ou “própria”, quer dizer, torta e errada ela seja; uma corrente umbilical de dura ternura a liga ao baixo ventre do sujeito e a opinião se faz uma extensão discursiva e ao mesmo tempo sensível da pessoa.

De modo que facilmente se confundem nessas imaginações a mensagem e o mensageiro – confusão essa que, aliás, o próprio conteúdo desse discurso trata de afirmar.

Mas será mesmo que deveríamos, por conta de alguma perniciosa condescendência, deixar intocada a barafunda ideológica na cabeça desses sujeitos, cuidando de não ferir seus sentimentos afetuosos por suas bobagens?

Claro que não se trata de cair no mesmo subjetivismo e proceder com desprezo ao indivíduo. Antes disso, cabe reconhecer que cada situação e interlocutor demandam um modo de comunicação que cumpra o objetivo de clareza da mensagem, pois ela é o que importa.

E, então, é preciso mostrar que o pretenso instrumento ideológico relativista de luta dos oprimidos – contra o machismo, o racismo etc. se torna, ao contrário, um meio de reafirmação da opressão.

Pois quando o sujeito é tornado o fundamento da legitimidade e verdade do discurso, todo e qualquer discurso se torna automaticamente legitimado. Aliás, não há mais como se falar em legitimidade. Se cada cultura ou indivíduo é o lugar próprio da justificação e da verdade – e disso resulta uma discordância a mais natural de se esperar -, o que é que pode servir de critério para avaliar qual está certa e possui legitimidade ao reivindicar tal e tal direito?

Se não é possível que discursos contrários ou antagônicos coexistam (pois expressam interesses igualmente contrários ou antagônicos, ainda que o parlador não tenha noção disso e de seus próprios interesses), a questão só pode ser resolvida pela força ante, anti e não-discursiva. As lutas relativistas contra o “eurocentrismo” (eis aí um termo absurdo frente à diversidade cultural dos povos europeus!) dos opressores deságuam, pois, na mais completa afirmação da superioridade da “cultura européia”, do machismo, da heterossexualidade, da raça ariana etc., pois apenas a violência resta como medida de avaliação, quando tudo o mais se relativizou ao ponto subjetivista.

Eis que, mais que apenas em verbo, agora o oprimido acaba por ter de aceitar a “verdade” material do opressor, ainda que o faça manifestando certa desagradável sensação de impotência e de desilusão e resmungue pelos cantos a impressão de ter sido enganado em algum momento dessa história.

Sem uma crítica racional e objetiva não há avanços. E como o pior dos mundos possíveis sempre se torna real, por essa via abre-se todo um campo de oportunidades de cooptação e “desempoderamento” das lutas, justamente o inverso que esse discurso prometia oferecer.

.
.