Imortalidade

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Aqueles tantos indivíduos da desaparecida civilização micênica, que deixaram nada ou quase nada de suas vidas na memória da humanidade, foram parte dos pressupostos que fizeram Pitágoras trastear um nervo de carneiro e descobrir as ondas sonoras de acordo com cada ponto em que dividia o nervo.
 
 
O nervo do carneiro de Pitágoras faz parte dos pressupostos da subjetividade de todos os indivíduos vivos ou mortos que se fizeram ouvintes de música.
 
 
Quantas coisas mais não poderíamos citar?
 
 
Aquele indivíduo de quem não há nenhuma memória, daquela civilização desaparecida há mais de 3 mil anos, continua entre nós e, mais que isso, em nós, mesmo que não saibamos nada a seu respeito.
 
 
Ser é mais que saber e isso já é mais que suficiente para dizermos: na morte o corpo vira natureza, a alma vira mundo.
 
 
É isso o que interessa? Ora, o interesse vira paz absoluta.
 
 
Não haverá justiça? Única resposta para quem deseja um tribunal que, belo dia, faça a divina redistribuição da renda é: não se preocupe. Ocupe-se.
 
 
Por fim, comporte-se na hora da morte. Muito antes morreu Pátroclo, que era um nego bem melhor do que nós.
 
 
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Máscara mortuária de Agamenon, também melhor do que nós
 
 

Positivismo: pensamento e prática da verniz do senso comum

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Positivismo, apesar de seu aura academicista, não é tanto uma ideologia, ou metodologia, quanto uma atitude. Trata-se de atentar ao que está POSTO à observação, à experiência sensível. O positivismo é um empirismo, e é historicamente o mais abstrato.

Ao pretender ser meio de obter ou elaborar conhecimento objetivo e concreto, afirma sua rejeição à metafísica; porém, em seu entendimento restrito ao empírico, identifica (e reduz) esta à busca da compreensão das causas de um fenômeno. O positivismo visa observar tão somente relações entre fenômenos empíricos (onde “tudo é relativo” – afirmação de caráter metafísico que não tem problemas com a censura positiva). A causalidade mesma não passa de uma crença metafísico-teológica; um “hábito”, dizia David Hume (cujo Enquiry Concerning Human Understanding, uma obra-magnum do empirismo, panfleto histórico do combate à metafísica, teria destino trágico caso fosse levada a sério a última frase do livro).

Esse espírito “objetivo”, laico, republicano e moderno do positivismo é, como a falência histórica do empirismo tornou evidente (ao desaguar no ceticismo de Hume, ainda nos idos do séc. XVIII), um subjetivismo raso, mas não arbitrário, e sim um produto social, consequente à prática dos indivíduos da classe burguesa.

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A gênese do positivismo está no mercado – não o mercado mundial, e sim o mercado empírico. O espírito positivo tem raízes no olhar e na ação do dono da quitanda em sua atividade prática imediata na feira, onde realiza trocas com seus clientes (a.k.a. “consumidores”) após parlarem suas barganhas e pechinchas particulares.

Este é o habitat em que o burguês vivencia a experiência prosaica de um cotidiano mercantil (âmbito da “circulação simples de mercadorias”, segundo Marx); é deste aqui-agora que a atitude positivista se nutre.

O aqui-agora, apesar da sensibilidade nos sugerir ser o que há de mais concreto, é a forma mais abstrata, primitiva, pueril e ilusória da apreensão da realidade pela consciência, como Hegel argumenta no início da Fenomenologia; porque é o espaço e tempo do instante efêmero e em permanente mudança.

Ora, o burguês não conhece os bastidores (as “causas”) do mercado. Ele não vivencia a esfera da produção, mas apenas a superfície abstrata da troca de mercadorias (“esfera pública”); e, é claro, quando retirado ao seu quadrado particular, experimenta tão somente o desfrute egoísta no consumo (“esfera privada”). Donde não reconhecer nos “consumidores” a determinação primeira de produtores.

O burguês não trabalha, donde não age em cooperação com os outros, tal como o trabalho exige dos trabalhadores. O burguês é o próprio homem-lobo de Thomas Hobbes, imediatamente em guerra contra os demais burgueses (e contra os trabalhadores, na medida que estes querem maiores salários e, portanto, atentam contra os lucros), pois assim o mercado exige dos livres quitandeiros.

(Tudo isso já explica muita coisa. Por ex., como o defunto do empirismo pôde se levantar da cova e se tornar, ainda que um tanto apodrecido, uma das formas mais universais da consciência a partir de meados do séc. XIX, no que segue firme até hoje. Pois a classe dominante possui, evidentemente, o mais amplo domínio dos meios de produção da consciência, das idéias, dos valores morais e outros mais, etc.)

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A vivência restrita ao aqui-agora da circulação simples de mercadorias impede a mentalidade burguesa de conhecer as relações não-empíricas entre os fenômenos; muito antes, ela rejeita que existam. A partir disso, o burguês chega a negar a existência da própria sociedade. Para ele o que há é um amontoado de indivíduos, uma massa amorfa.

Daí ele ver tudo a partir do ponto de vista da moral. O trabalhador (ou “colaborador” e demais eufemismos infames) é “livre negociante” de suas forças no mercado de trabalho, tanto quanto o burguês é livre comprador (eis a fraternidade entre os igualmente livres); se há “luta de classes”, ou melhor, “conflito” entre “rico e pobre” – pois “classes sociais não existem” -, é por conta de inveja, preguiça, demérito do pobre, etc. O “pobre” é “livre pra se demitir” quando quiser e, portanto, não existe exploração; e é livre para escolher um “patrão melhor”, escolher um patrão que lhe convém (ou escolher ser patrão, novidade empreendedorística das crises do capital em finais do séc. XX; escolher viver sem patrão não convém, e rende ao indivíduo apenas alguns eufemismos “de esquerda” tão infames quanto os burgueses, tais como “morador de rua”, etc). Notável: patrões são diferentes enquanto patrões! Pois no “pensamento positivo social” não há nivelamento dos indivíduos por meio de qualquer determinação da classe burguesa, o que significa negar a existência de classes sociais (na pocilga social da pequena burguesia, este limbo aristocrático da classe trabalhadora ocupado por cabeças nefelibatas e pés mergulhados em chorume, isso se torna uma convicção: “patrão não é sinônimo de porco avarento!” Assim imagina um empirista subpositivista que sequer sabe o que é um patrão de verdade).

E quando a luta de classes ocorre de forma tão anárquica quanto a produção capitalista – que visa fins particulares, alheios e em concorrência universal -, ou seja, difusa e desorganizada, a burguesia faz dela um enorme ramo de negócios: trata-se da indústria social do crime, que emprega cifras fabulosas para lidar com o que se acredita ser um problema moral, restrito a cada indivíduo (“vagabundo”, “bandido” etc), quando na verdade é totalmente estranho, alheio, exterior aos próprios criminosos. O fato de surgirem 100 novos criminosos para cada 10 eliminados não chama a atenção do burguês, que prefere se ater a relações não-metafísicas tais como a má “natureza humana”, o império da vontade e escolha soberana do indivíduo isolado, a purificação da alma por meio da culpa e do martírio do corpo etc.

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O primeiro a pretender sistematizar o positivismo numa forma filosófica foi A. Comte. É notável que ele afirme a evolução ou progresso da humanidade através de 3 etapas (ou “leis”) – espírito religioso, espírito metafísico e, finalmente, espírito positivo (ou “científico”) – e nos demonstre isso em sua própria trajetória individual. Comte era engenheiro; posteriormente elaborou a filosofia positivista, uma forma de empirismo ultra-metafísico; esta desaguou, em seus derradeiros escritos e anos de vida, na criação da Religião Positivista.

Cá entre nós: parece, mas não é nada contraditório. Ou não é nada surpreendente, já que é só contradição em cima de contradição. E que tal saber que o único país que levou Comte a sério e fundou templos positivistas foi o Brasil? “Ordem e Progresso”: sequer consegue ser decepcionante.

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não conte comigo

Na luta de classes nem todas as armas são boas

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Leminski é muito legal. Mas teve a brutal infelicidade de dizer que

– “na luta de classes todas as armas são boas”.

Stalinistas adoram repetir isso, tal como a burguesia também adora ouvir, enquanto Maquiavel, mesmo em seus momentos mais maquiavélicos, teria nojo.

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Não, Leminski. Absolutamente não!

Na luta de classes as armas boas são armas boas, armas que fortalecem os trabalhadores e derrubam os burgueses.

Armas que disparam pra trás só são boas do lado de lá da luta. É pra burguesia que você escreveu seus poemas?

As armas que o pseudomarxismo, ou melhor, do velho e apodrecido, mas ainda insepulto, marxismo vulgar – nascido ainda na época de Marx, tornado tradição a partir da 2ª Internacional, e arraigado de forma definitiva como ideologia oficial pela atuação geopolítica da URSS (disseminadora da prática e do catecismo stalinistas, a.k.a. “marxismo-leninismo”, a doutrina das conveniências do Estado soviético transformadas em “teoria”) – não são boas para lutarmos contra a burguesia.

O marxismo vulgar é a degradação do pensamento revolucionário para uso e abuso de interesses particulares. Em outras palavras, transforma teoria em apêndice da prática política e instaura o praticismo (que “vale mais que mil teorias”). Deformou Marx até se tornar mitologia, pensamento político.

Essas armas são ótimas para produzir a desmobilização dos trabalhadores, a desconfiança e as piores certezas, tão logo percebam onde termina a fila do abate.

Quantas vezes a História precisa nos mostrar isso?

E depois nós temos ainda que ouvir chorumelas sobre a “guinada dos trabalhadores ao fascismo”, como se houvesse algum, e como se a esquerda não tivesse, muito antes, jogado os trabalhadores no colo da direita.

A esquerda cujo discurso sequer menciona a revolução social, a socialização da propriedade privada e o fim do Estado merece pregar seus sermões no fundo da latrina. Que vá dialogar com a direita por lá.

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lem
noites de facas longas

 

O que foi que deu errado?

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Não é apenas o socialismo que “deu errado”.

A humanidade “deu errado”.

Não funciona, não mais.

1848 não “deu errado”? De lá pra cá, só ladeira abaixo.

Os indivíduos vivendo suas vidas cotidianas atrás de satisfazer suas necessidades, antes de todas mais sobreviver, e em condições alheias às suas vontades e seus desejos, potenciais e talentos, mas sempre em relação uns com os outros no dia a dia – e eis que vamos vivendo as nossas vidas -, de repente são declarados inúteis.

(Tem gente que ainda faz elegias sobre a própria descartabilidade em ritmo de rock paulista.)

“Não funcionam” mais. Viver “não funciona”. A sociedade “não funciona”. Como o socialismo poderia ter “funcionado”?

É certo que a forma social sob a qual sobrevivemos nos levou ao apodrecimento universal: ambiente, sociedade, corpo, mente, uma verdadeira metástase da decadência humana.

Mas, até onde sei, nada disso deveria de fato funcionar.

Não somos mecanismos. A sociedade não é um sistema. Não existe nenhuma engenharia social e seus modelos de sociedade.

A sociedade nada mais é que a associação dos indivíduos, agora mesmo, ao longo dos segundos e sempre (nem que empurrando nas coxas), e é a síntese de suas forças, resultante dessa articulação.

Se ela parece um “sistema” que não funciona, afastada e acima de nossas cabeças, e se nós parecemos meros funcionários desfuncionais, é porque aquela síntese se produz arrancada de cada um de nós, sob comando de uma lógica anti-humana que guia a produção e reprodução de nossas próprias vidas e volta essa força social contra a natureza e contra a própria humanidade.

Pois então. Sociedade tinha de ser vida humana, não uma engenhoca que tem de funcionar. Gente não é pra funcionar, é pra crescer. Mas uma coisa aqui funciona perfeitamente bem: o capitalismo. Totalmente eficaz em nos transformar em coisas, nos exigir funções que nos desumanizam e depois decretar nossa desfuncionalidade.

O socialismo não funciona e nunca vai funcionar, e jamais deverá funcionar de qualquer jeito; porque gente é pra viver, e não pra virar apêndice de uma máquina.

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deturparam o capitalismo
Hobbes comunista deturpou o capitalismo em uma enorme conspiração global! 😮