Entorpecimento da sensibilidade e morte da arte

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A arte é a atividade de educar a sensibilidade por meio da humanização do mundo.

Por outro lado, o mundo provê ao artista não apenas o material e os meios da sua atividade, mas também as condições da produção de sua própria subjetividade (dons, talentos, sentidos, pensamento, sentimentos, interesses etc.), bem como o saber artístico; por fim, not least, a demanda histórica e social pela arte, a finalidade humana específica de um tempo à qual a arte responde.

O drama do artista de hoje é que ele educa seu senso estético em meio a um mundo que oferece e exige o anestesiamento da sensibilidade de todos.

O que seria refinamento sensível se torna isolamento e idiossincrasia, o que seria ampliação do espírito vira loucura, o que seria desenvolvimento da criatividade se perverte como capricho, o que seria luz e beleza se mistifica em mistério e estranhamento, o que seria arte e humanização se degenera no entorpecimento e na irracionalidade, o que seria estética se dissolve em discursos sofísticos, o que seria plenitude de sentido se torna mercadoria descartável ou lembrança vaga de academicistas no boteco.

O que era pra ser alma vira tara, depressão, desalento e autodestruição.

De modo que não é incomum aos que padecem de gênio e percepção a alternativa de se matar o doente para curar a doença, ainda que, pacientemente, arrastem o tratamento como quem aproveita a sarjeta para lavar o coração, esfregando o peito no asfalto.

Como não haveria de morrer a arte, quando a humanidade inteira apodrece hoje por sob a própria pele?

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Herbert James Draper - Ulysses and the Sirens (1909)
Herbert James Draper – “Ulysses and the Sirens” (1909)

Os problemas dos “Manuscritos Econômico-Filosóficos” da Boitempo

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Jesus Ranieri, tradutor da edição da Boitempo Editorial dos “Manuscritos Econômico-Filosóficos” de Marx, trata os termos “exteriorização”, “objetivação”, “estranhamento”, “alienação” e correlatos (por vezes somos brindados com uma “extrusão” ou “reificação”) de forma problemática, para não dizer outra coisa.

Ranieri diz na Apresentação:

– “Em primeiro lugar, é preciso destacar a distinção sugerida, nesta tradução, entre alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfremdung), pois são termos que ocupam lugares distintos no sistema de Marx. É muito comum compreender-se por alienação um estado marcado pela negatividade, situação essa que só poderia ser corrigida pela oposição de um estado determinado pela positividade emancipadora, cuja dimensão seria, por sua vez, completamente compreendida a partir da supressão do estágio alienado, esse sim aglutinador tanto de Entäusserung quanto de Entfremdung. No capitalismo, os dois conceitos estariam identificados com formas de apropriação do excedente de trabalho e, conseqüentemente, com a desigualdade social, que aparece também nas manifestações tanto materiais quanto espirituais da vida do ser humano. Assim, a categoria alienação cumpriria satisfatoriamente o papel de categoria universal que serve de instrumento para a crítica de conjunto do sistema capitalista.

Na reflexão desenvolvida por Marx não é tão evidente, no entanto, que esse pressuposto seja levado às suas últimas conseqüências, pois os referidos conceitos aparecem com conteúdos distintos, e a vinculação entre eles, geralmente sempre presente, não garante que sejam sinônimos. E é muito menos evidente ainda que sejam pensados somente para a análise do sistema capitalista. Entäusserung significa remeter para fora, extrusar, passar de um estado a outro qualitativamente distinto. Significa, igualmente, despojamento, realização de uma ação de transferência, carregando consigo, portanto, o sentido da exteriorização (que, no texto ora traduzido, é uma alternativa amplamente incorporada, uma vez que sintetiza o movimento de transposição de um estágio a outro de esferas da existência), momento de objetivação humana no trabalho, por meio de um produto resultante de sua criação. Entfremdung, ao contrário, é objeção socioeconômica à realização humana, na medida em que veio, historicamente, determinar o conteúdo do conjunto das exteriorizações – ou seja, o próprio conjunto de nossa socialidade – através da apropriação do trabalho, assim como da determinação dessa apropriação pelo advento da propriedade privada. Ao que tudo indica, a unidade Entäusserung-Entfremdung diz respeito à determinação do poder do estranhamento sobre o conjunto das alienações (ou exteriorizações) humanas, o que, em Marx, é possível perceber pela relação de concentricidade entre as duas categorias: invariavelmente as exteriorizações (Entäusserungen) aparecem no interior do estranhamento, ainda que sejam inelimináveis da existência social fundada no trabalho humano”.

 

A distinção entre alienação e estranhamento é correta, mas por outras razões.

Em primeiro lugar, compreender a alienação como “um estado marcado pela negatividade” não é “muito comum” por acaso. O sentido que Marx dá ao termo, e a cada um dos demais, está claro no uso que faz deles no texto, alterado na tradução em questão: em momento nenhum, o termo alienação pode ser (senão em Hegel) identificado com um ato de “remeter para fora, extrusar, passar de um estado a outro qualitativamente distinto. /…/ despojamento, realização de uma ação de transferência, /…/ exteriorização”.

Resulta daí que Ranieri entende alienação como “momento de objetivação humana no trabalho, por meio de um produto resultante de sua criação”, donde não lhe ser muito evidente que seja pensada “somente para a análise do sistema capitalista”, mas antes lhe parece “ineliminável da existência social fundada no trabalho humano”.

De acordo com a letra de Marx, objetivação e exteriorização de fato são análogos: “inelimináveis da existência social fundada no trabalho humano”, dizem respeito ao ato de tornar objeto o que era apenas idéia, télos, algo que até então só existia na subjetividade. Em uma só palavra: produção.

(É certo que a idéia é determinada “de fora” – de início, enquanto linguagem – e as condições de sua exteriorização são dadas também pelo exterior à cabeça que a pensa, assim como todo o sujeito o é; mas nada disso significa que a idéia está pronta “lá fora” antes do sujeito pensá-la.)

Alienação e estranhamento nada têm a ver com isso. Vejamos primeiro este, por meio do exemplo da religião: ela não nasce da alienação, mas do estranhamento – frente à natureza desconhecida (com a qual, entretanto, os homens têm de lidar, portanto uma natureza francamente hostil) -, e se manifesta primeiramente sob o estágio rústico do mito, “religião natural”, não-institucionalizada e sem escritura.

Posteriormente, se mantém e se fortalece por sob outra forma de estranhamento, não mais diante da natureza, e sim em meio à própria sociabilidade; forma de estranhamento que pressupõe a transformação do trabalho, do produto e das capacidades do trabalhador em mercadorias, donde decorre toda sorte de perversões na entificação do indivíduo e da sociedade. Em suma, pela alienação – que significa, entre outras coisas, tornar alheio; e especialmente: hipotecar, vender. Trata-se de uma “ação de transferência” historicamente muito bem determinada. Por aí se vê que o termo possui um caráter perfeitamente materialista, nem um pouco místico ou metafísico.

Nem todo trabalho é estranhado e/ou alienado – e é justamente resgatar seu caráter genérico e universal a meta da superação do capitalismo pelo comunismo; afirmar o contrário (como certos teóricos “críticos” ou antropólogos pós-racionais fazem) é condenar a humanidade à inautenticidade na qual Heidegger et caterva a atiraram. Com isso, está aberta a porteira para o anti-humanismo que decreta ser o homem um “câncer” da natureza. Acreditar nesses apóstolos do abismo final, e continuar atuando de cabeça baixa no decrépito drama da vida sob o capital, é se esforçar por merecer suas profecias macabras, enquanto fétida e desgraçadamente as confirma.

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Resta apontar dois outros detalhes da (primeira) edição dos MEF pela Boitempo.

Ranieri enxertou no texto o que era uma nota de pé de página: é o primeiro parágrafo da pág. 107 (“A prostituição” etc.), que na verdade é nota na pág. 104, décima linha, após “prostituição universal”. Notem que o enxerto da nota na pág. 107 não faz sentido algum.

E, por fim, Ranieri trocou a ordem dos cadernos do Terceiro Manuscrito. Em vez de 1) Propriedade privada e trabalho, 2) Propriedade privada e comunismo, 3) Necessidades, Produção e Divisão do Trabalho, 4) Dinheiro e 5) Crítica da dialética e filosofia hegelianas em geral, ele re-elencou os três últimos como 3) Crítica da dialética e filosofia hegelianas em geral, 4) Necessidades, Produção e Divisão do Trabalho (traduzido como “Propriedade privada e Carências”) e 5) Dinheiro.

Pode parecer bobagem, mas não é. Marx fecha os MEF com a crítica a Hegel, amarrando toda a crítica anterior, contra a Economia Política. A mudança da ordem desses tópicos, ao contrário, tende a passar uma impressão de aleatoriedade, tornando a crítica à especulação algo estranho ao resto do texto.

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manuscritos-economico-filosoficos

Ateísmo de direita: um culto à alienação

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Quando os religiosos criticam o ateísmo como um tipo de crença, uma “religião sem deus” (e não é saudável que sempre percebam de forma negativa essas coisas de dogmas, doutrinação, superstição e religião?… ainda que apenas as dos outros, é claro), não estão simplesmente dizendo que a calvície também é um tipo de penteado.

Porque o ateísmo de direita, burguês ou pequeno-burguês, é isso mesmo. Mistureba de biologicismo e agnosticismo em torno de uma mitologia e ritualística da fé na “ciência”, mistificação da razão, prática proselitista e reafirmação de uma “natureza pecadora” da humanidade – o egoísmo, do qual não busca salvação, mas dele se envaidece e faz apologia.

Alguns crentes associam isso ao satanismo. Estão equivocados. O satanismo é, ou seria, um paganismo – mais imaginário que histórico, é vero. Mesmo assim, enquanto os pagãos glorificam a vida, o ateísmo de direita leva o nojo que o cristão alimenta diante da vida às últimas consequências e celebra o mais agudo anti-humanismo, em adoração à mão invisível de Mamon.

Satã não passa de um querubim largado ao chão diante do Deus ateu, o único verdadeiramente Universal, perante o qual todos se ajoelham e rezam o cântico ecumênico da alienação – ainda que sua Omnipresença seja bastante exclusiva, casual e por vezes temperamental, oscilante ao cintilar na particularidade dos eleitos, dentre os quais hão de emergir seu Filho e sua seleta caterva de Iscariotes.

O que não impede, mas antes providencia, a religiosidade atéia: bendito é o dinheiro, mesmo que eu não tenha nenhum; louvado é o capital, apesar de eu ser mercadoria; sagrada é a propriedade privada, a qual me priva de toda propriedade. Jesus? Tem valor sim, enquanto empreendimento.

Weber chamou o protestantismo de “espírito do capitalismo”. Ele foi bem otimista, ou outra coisa. Antes dele, Marx já havia dito que “a religião é o espírito de um mundo sem espírito”. Pois bem: o ateísmo de direita não apenas afirma a inexistência de autenticidade humana, mas ainda repele a idéia da mera possibilidade de haver qualquer uma. Não quer um mundo espirituoso e não critica o vale de lágrimas; ao contrário, dá razão a elas, por meio de uma religião sem além e contra o espírito.

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Mammon
A propriedade privada nos tornou tão estúpidos e unilaterais que um objeto só é nosso quando é imediatamente possuído. Em lugar do todos os sentidos físicos e espirituais, fez surgir o estranhamento de todos eles: o ter. (Marx)

Contra a pessoa de Marx: quando tudo que os críticos têm é um plano B

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Dentre as coisas mais vis que são ditas contra Marx, duas em especial são muito freqüentes: uma, a acusação de que ele era racista; outra, a de que traiu a esposa, engravidou a empregada e jamais assumiu o filho.
 
(Muito se diz que ele ainda por cima era satanista, mas essa imputação é só uma comédia pastelão de carolas da côrte papal.)
 
Em primeiro lugar, nada autoriza dizer que Frederick Demuth era filho de Marx. Isso é simplesmente uma mentira montada sobre parcos, vagos e, principalmente, bem selecionados documentos sobre o fato.
 
Em segundo lugar, é notável que esta e a outra acusação sejam feitas quando, ainda hoje e não menos que antes, o racismo e o adultério se manifestam em escala industrial na sociedade, de modo que se pode caracterizá-los como estruturais. Ou seja, o telhado de quem atira as pedras é de bolha de sabão.
 
Mas o mais importante a se dizer é que essas e as demais denúncias feitas contra Marx possuem todas uma única razão, que jamais se confessa: os acusadores as formulam porque, em sua mediocridade, não têm o que responder ao que Marx disse.
 
A falácia é velha: se não há como rebater um argumento, ataque o argumentador.
 
Funciona assim:
 
. O autor M afirma a proposição V;
. Há um punhado de características negativas em M (racismo, adultério, satanismo etc);
. Logo, a proposição V é falsa.
 
Eis como a lógica do intestino refuta, p.ex., a lei do valor, por meio de, p.ex., uma carta de julho de 1862 a Engels – em que Marx deslanchou a zoeira ao chamar Lassale (o socialista que lambia as botas de Bismarck) de “produto peculiar da união de judaísmo, germanismo e uma substância negra básica, descendente dos negros do Egito”.
 
(Ah, pois é: me esqueci que ele também era antissemita; quanto a ser antigermanista, isso não é pecado. O detalhe curioso nessa história é que Marx, filho de judeu e alemão, era chamado pela família e pelos amigos de “Mouro”, por sua pele escura. Os mouros, como se sabe, são povos oriundos do norte da África, formados pelos grupos étnicos berberes e árabes, ainda hoje predominantes na África setentrional.)
 
Enfim. Se Marx era racista ou o caralho a quatro, que interessa? Atingir pessoas só é pauta nos relinchos da fofoca.
 
A título de conclusão: não só é perfeitamente possível e correto separar a obra e o criador; mas, justamente porque a pessoa e aquilo que ela faz não se confundem, é que a atividade pode ser alienada do indivíduo. Ou seja, é por isso que ele pode vender a sua atividade, que não precisa ter, e normalmente não tem, nada a ver com a sua pessoa. De modo que o trabalho vira só um meio de angariar o salário, e o sujeito faz seu trabalho ainda que o odeie.
 
Parafraseando Aristóteles, quem se confunde com a própria atividade ou é um animal ou é um semi-deus, posto acima da alienação que marca a individualidade, a atividade e a sociedade capitalista.
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ad hominem
parte logo pra porrada