“Ser Absoluto”: sequer uma idéia

.
 
 
Me perguntaram por que o Ser Eterno (e nomes congêneres: absoluto, infinito, incondicionado etc.) é uma contradição em termos – de que sequer se consegue fazer idéia.
 
 
 
Ora, o que é isso, um ser?
 
Tudo aquilo que existe, todo e cada ser é uma síntese particular de variadas qualidades: material, extensão, peso, textura, cor, sabor, tamanho, consistência etc. etc.
 
Esses atributos se entificam na forma de um ser, ou coisa, na medida que a coisa se encontra num meio que a determina, enquanto ela também determina as outras coisas ao redor, de modo que o limite que separa e distingue uma coisa de outra é estabelecido na relação entre elas.
 
Cada atributo da coisa é um limite da coisa: a cor azul determina que ali a cor não pode ser não-azul; minha pele e o plástico são limites que fazem com que meus dedos e o teclado não se confundam; etc.
 
Ser é estar em relação com outros seres, e como se trata de um resultado do enredamento contínuo de múltiplas predicações ou qualidades, sua concreticidade fatalmente incidirá sobre os órgãos sensitivos (o raio X é invisível às nossas retinas, mas alguns segundos de exposição a ele são suficientes para constatar sua existência), e/ou também pode ser detectada por instrumentos tecnológicos que estendem o alcance de nossos sentidos, ou ainda de forma indireta, por meio de pistas que sua presença deixa nos arredores, na relação com outros seres.
 
Ser é ser concreto, e assim se faz objeto de outros objetos; nessa relação, todo ser exprime efetividade: todo ser se põe e impõe (com maior ou menor preponderância) sobre os demais.
 
Por isso, todo ser é objetivo, e ser objetivo é ser objeto para outros seres; uma vez que a coisa se impõe diante da materialidade do corpo humano e vice-versa, serão ambos, a princípio, anteriores, exteriores, autônomos e indiferentes à subjetividade, à percepção, à consciência e à idéia.
 
As idéias só possuem efetividade sobre as coisas na medida que orientam a prática material, a atividade sensível, pela qual se projeta para além da consciência e se exterioriza em um meio material: é o produto da ação criadora do trabalho.
 
As idéias mesmas são abstrações dos atributos das coisas, com o que se consegue ter um carro na imaginação sem que tal carro de fato esteja concretamente presente – e por isso não se diz que as idéias existem, ou ao menos não como as coisas. Idéias se formam com alguns atributos, mas nenhum deles de caráter natural, material, físico; tais atributos são formados por signos e seus significados. A idéia “existe” na imaginação ou está plasmada nas coisas, mas ela é pobre diante das coisas, e apenas existe enquanto determinada coisa – o cérebro – a produz.
 
 
———————————–
 
Existir é uma efetivação da síntese de atributos (a coisa) – na medida que ela possui medida (do grego “métron“). Ou seja, limites.
 
Já que a questão era sobre o “ser eterno”, vamos falar do tempo.
 
Um dos limites da coisa está em seu movimento, do qual a nossa percepção extrai a noção de tempo.
 
Essa noção é a de um fluxo de momentos, instantes que, por si mesmos, nada são. Tão logo o agora é, deixa de ser e outro agora toma seu lugar. Na abstração, ilustramos o movimento das coisas como uma passagem por 3 instâncias: do que “ainda não é” pro ser, e deste pro “não é mais”.
 
E a eternidade, o que é? Não é fluxo. Nada envelhece se for eterno. Nada se move. É o instante congelado num presente absoluto. Mas, pra imaginarmos isso, pensamos de forma temporal: um instante que nunca pára de acontecer. Ora: instante, parada, acontecimento, todos estes termos são temporais. Na eternidade não há nada acontecendo, nada se move, nada é; pois ela é a abstração da temporalidade. Abstração que pretende ser absoluta, por isso é impensável, senão em analogia com o tempo, que não é absoluto, mas relativo, limitado.
 
———————————–
 
Santo Agostinho se aventurou a falar disso e nos legou ótimas reflexões; porém, caiu no beco sem saída do subjetivismo, ao afirmar que o tempo não existe nas coisas, mas é produto da consciência.

Não vamos nos estender mais. Vou deixar aqui o grande lampejo ontológico materialista, se me permitem a expressão, do teólogo alemão L. Feuerbach, um antídoto contra toda forma de consciência antropomórfica, subjetivista, mítico-religiosa e idealista, da qual brotam os oxímoros mais inocentes – que, entretanto, passam por profundos pensamentos.

 
 
– “Um ser que não se distingue do pensar, um ser que é apenas um predicado ou uma determinação da razão, é unicamente um ser pensado e abstrato, na verdade, não é ser algum. […] O ser da lógica hegeliana é o ser da antiga metafísica, que se enuncia de todas as coisas sem diferença porque, segundo ela, todos têm em comum o fato de ser. Mas este ser indiferenciado é um pensamento abstrato, um pensamento sem realidade. O ser é tão diferenciado como as coisas que existem. […] Característica da anterior filosofia abstrata é a questão: como é que outros seres, substâncias autônomas e distintas podem agir umas sobre as outras […]? Mas tal questão era para ela insolúvel, porque abstraía da sensibilidade; porque as substâncias, que deveriam agir umas sobre as outras, eram seres abstratos, puros seres do entendimento. O mistério da ação recíproca resolve-se apenas na sensibilidade. Só os seres sensíveis agem uns sobre os outros. […] O entendimento abstrato, porém, isola este ser-para-si como substância, átomo, Eu, Deus – por conseguinte, só pode conectar arbitrariamente o ser para outro. […] Só a determinidade constitui a distinção, a fronteira entre o ser e o nada. Se eu deixo de lado <o que é>, que pode ser ainda este simples <é>?” (Teses Provisórias).

Epistemologia: glacê crítico para decorar ideologias burguesas

.

Epistemologia é a área da Filosofia que mais produz asneiras sob a crença de estar pensando de maneira “crítica”.

É o playground predileto dos filósofos da burguesia, de Descartes a Popper et caterva.

Quanto mais absurda e mais enrolada em pseudoproblemas – tais como “de que modo o cérebro, que é uma coisa material, se relaciona com a mente, que é imaterial?”, donde o ceticismo, o relativismo, a negação da razão, a afirmação da Vontade do Führer, a defesa do liberalismo etc. -, mais “crítica” ela se pretende.

Algumas declarações típicas surgiram num debate, e como elas estão adentrando o senso comum, achei que valia a pena rabiscar uns comentários:

– “[É falso] acreditar que o papel da ciência é buscar uma essência ocultada pelas aparências que, se descoberta, proporcionaria um conhecimento definitivo da realidade em sua totalidade”.

Sim, a ciência busca descobrir a essência ou lógica do objeto por sob sua aparência; mas não tem nada a ver com adquirir um “conhecimento definitivo da realidade em sua totalidade” (de fato, um papo estranho). A pessoa que afirma ser a concepção de ~ciência como descoberta~ um “totalitarismo epistemológico” acusa um espantalho; pois pensa que o objeto (seja qual for) a ser descoberto é inerte, donde poderíamos desvelar suas camadas até chegar à sua essência íntima e estável e, então, ter um saber absoluto acerca dele. Ora, isso o “crítico” só pode pensar estacionado à frente da carroça de Parmênides, dizendo amém ao infantilismo ontológico da metafísica. Pois nada que existe está estagnado: tudo está em processo, e quando conhecemos algo da coisa, ela já está adquirindo novas determinações. Ontologicamente, não há como ter “conhecimento definitivo da realidade em sua totalidade”. Isso é conversa de sacerdote que imagina possuir o whatsapp de Deus.

– “Há um caráter falseável de toda teoria que almeja a descrição da realidade. Não existe “conhecimento verdadeiro”. O que existe é conhecimento com maior capacidade de sobrevivência a críticas”.

Eis o que pensava Popper. Ele acreditava que teorias não poderiam ser verificadas de forma definitiva, mas acreditava que elas poderiam ser falsificadas assim. Enquanto não fossem falsificadas e fossem resistindo aos testes (e enquanto fossem úteis), ficavam no pódio (ou “paradigma”). O problema dessa conversa definitivista-ao-contrário é que os procedimentos que testam a teoria estão todos embasados em outras teorias, de modo que a falsificação de uma teoria é que pode ser falsa. Em suma, teorias não são verificáveis e nem falseáveis de forma definitiva. Aliás, quem é que está preocupado com isso?

O que mede o caráter “definitivo” do conhecimento não é nenhum laboratório de falsificacionismo, mas sim a necessidade humana e o quanto uma teoria a satisfaz. Por exemplo: a lógica dos agentes infecciosos conhecidos como “vírus” deixou de ser conhecida de modo “definitivo” tão logo o HIV se tornou um problema pandêmico e revelou à ciência que sua lógica era especificamente mais complexa que até então se sabia sobre os vírus. Mesmo assim, tal conhecimento satisfaz a necessidade de combater a maioria deles, e é ele que pode servir de base para decifrarmos a imensa variabilidade genética, o rápido ciclo de replicação e de mutação e demais propriedades específicas do HIV (sobre o qual já se sabe bastante coisa).

– “Todo contato que temos com a realidade já produz um objeto mental construído pelo nosso entendimento, portanto, não é correto afirmar que há uma primazia do objeto em relação ao sujeito”.

Kant regurgitado até virar alfafa sub-idealista. “Todo contato que temos com a realidade ~~produz~~ um objeto mental ~~construído~~ pelo nosso entendimento”. O objeto mental é produzido no contato que temos com a realidade ou ele é construído pelo nosso entendimento? Se é preciso haver contato com a realidade antes de imaginarmos o objeto, é óbvio que há uma primazia da realidade… e lá se vai a tentativa de dizer que a realidade é construída pelo sujeito (uma “crítica” que se desenvolve ainda no maternal).

– “Nossa mente constrói regularidades através de interpretações, não apenas é passiva de uma regularidade dada do objeto”.

Não é “apenas” passiva de uma regularidade dada pelo objeto, mas então reconhece que a regularidade é dada por ele; que, aliás, é o único critério existente pra avaliarmos as interpretações que a mente constrói.

– “A lógica das coisas não é algo dado na realidade, mas sim, construída por uma mente capaz de ‘logicalizar’ [sic] a realidade”.

Uma mente que fornece à realidade a sua lógica! Será que isso é filosofia, ou é religião? Estamos falando de cientistas ou de Deus? De fato, a lógica das coisas não está dada a nós, mas muito menos a construímos. Ela é extraída da realidade (das coisas reais) por meio da investigação, e então é decifrada e, por fim, descoberta. Como disse Marx, se a aparência das coisas correspondesse à sua essência [ou: se a lógica das coisas estivesse naturalmente exposta aos nossos olhos nus], a ciência não seria necessária. Se for pra brincar de “inventar lógicas”, é bem melhor fazer ficção científica que fazer da filosofia e da ciência uma palhaçada que abre alas para o irracionalismo e o anti-humanismo burgueses.

.

190039_257188974410541_1204406647_n
mas consegue parir Schopenhauer, positivistas etc

A esquerda na barafunda maquiabólica de Gramsci com Stalin

.

Maquiavel foi um dos maiores teóricos, talvez o maior, da prática política.

Seu propósito, seu limite, seu drama e a razão de seu fracasso como ideólogo estão sintetizados na determinação histórica que simultaneamente os explica e caracteriza o pensador florentino enquanto, e contraditoriamente, gênio e retardatário, realista e utópico.

Trata-se do intento de restabelecer a sociabilidade comunal recém-dissolvida no surgimento e consolidação das relações sociais mercantis que constituem a infância feroz do capitalismo, do qual Maquiavel é o primeiro crítico; mas ele ainda está na aurora da modernidade, e só poderia tentar compreendê-la a partir do passado pré-diluviano. É tudo que o momento histórico oferece a ele. Como parâmetro e finalidade de sua tradução e defesa do Estado absolutista – eis o que tem para acreditar poder servir como remédio da corrupção da sociabilidade -, ele elege como ideal a antiga república romana.

É curioso como Gramsci se debruça longamente sobre o pensamento maquiaveliano e, ao mesmo tempo, termine por apresentar qualidades e deficiências análogas.

Gramsci também foi um dos maiores teóricos da prática política – com a diferença de poder ter subido sobre os ombros da História e de pensadores como Hegel, Marx e o próprio Maquiavel; uma vantagem que, entretanto, faz deste último um pensador ainda maior.

Gramsci nos oferece uma profunda e aguda compreensão do Estado capitalista e da política moderna – léguas à frente do marxismo oficial da época, bem como dos vanguardistas. Seu defeito, porém, está justamente aí. Não que Gramsci deixe escapar de suas análises, ou ao menos de sua vista, as categorias da sociedade civil; mas elas perdem, um bocado ou totalmente (o que por ora vou ficar devendo uma avaliação mais cuidadosa), a força preponderante sobre o Estado, e Gramsci se torna mais próximo de Maquiavel à medida em que se distancia de Marx, justamente quanto ao que caracteriza a ruptura e crítica filosoficamente revolucionárias deste contra o idealismo de Kant e Hegel e também o materialismo francês e de Feuerbach.

Embora Gramsci fosse um crítico do stalinismo, não é casual que seja reivindicado como teórico da esquerda e, paralelo a isso, seja amalgamado a uma prática forjada pela política do partido stalinista, ainda hoje – adivinhem – hegemônica na esquerda.

Alguns diriam que o resultado dessa barafunda entre insuficiência teórica e prática oportunista é uma esquerda maquiavélica. Mas, para que de fato conseguisse chegar a tanto, seria preciso à esquerda muito menos vulgaridade e muito mais Maquiavel; e assim, quem sabe, começar a se livrar de sua realpolitik e se tornar realmente de esquerda.

.

mach - gramsci

Uma nota acerca da bandeira do “combate à corrupção”

.

O combate à corrupção parece ser, aos olhos de muitos, a principal tarefa a se cumprir para transformar o Brasil em um país melhor.

Entretanto, essa pauta tem apenas um lado: o da “moralização” da arena política, ou seja, dos políticos; mas isso não é apenas uma disneylândica utopia, é uma escamoteação do verdadeiro problema desde a sua superfície.

Pois supõe que tudo se reduz ao ato imoral do político corrupto. De início, ignora ou despreza que trata-se de uma relação – e que nela temos também os corruptores, o que se perde na medida mesma em que o protagonismo preponderante é deles, para lançar o foco apenas nos corrompidos; donde só resta presumir que a questão é individual e moral. Daqui para a propositura de que tal problema só pode ser enfrentado por uma “política ética”, isto é, por “novos políticos”, é menos de um passo.

Ou seja: sob os parâmetros de um entendimento subjetivista e irrealista (e, portanto, moralista), sobra à prática se estreitar na miserável via da busca de uma “nova” política – tão quimérica quanto o que só pode brotar da ignorância quanto à raiz econômica da politicidade, e tão “nova” quanto pode ser a política que compartilha das mesmas vistas grossas que são feitas sobre os corruptores, vulgo “financiadores” e lobbistas.

Eis aqui, nas palavras de meu amigo Hugo Vargas, o que deve ser ponto central da agenda de uma esquerda que pretende fazer jus ao seu posicionamento, isto é, que não almeja simplesmente permanecer iludindo a si mesma e aos trabalhadores quanto à seu “empoderamento” no cassino burguês do poder de Estado:

– “A Vale acaba com um rio no sudeste. Comete um crime ambiental gravíssimo. Compra parlamentares. Foi comprada a preço de banana numa maracutaia da era FHC.

A Ambev paulatinamente monopoliza o mercado de bebidas nacional. Enfia milho transgênico na cerveja. Compra parlamentares. Sem mencionar dívidas com o fisco.

Itaú e Bradesco oligopolizam o mercado bancário. Compram parlamentares. Muito provavelmente cometem fraudes no sistema financeiro a serem reveladas talvez na Lava Jato.

Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez são entidades cuja podridão ninguém ousaria contestar. Compram sua bancada de representantes também.

JBS e BRF Alimentos são comprovadamente entidades nocivas que também oligopolizam o mercado dos frigoríficos e fazem o diabo no país.

A Oi também é fruto de maracutaia da era FHC. Sugou bilhões do fundo público.

Mas qual a pauta perante tudo isso? Eleger o Lula? Eleições diretas?
Urgente seria expropriar todos esses empreendimentos. Não há momento mais oportuno, mais evidente. Todos eles devem bilhões e cometeram crimes incontáveis. São aviltantes até mesmo para a normalidade de uma democracia burguesa.

Se o PT fosse de esquerda, ele e suas entidades já estariam pautando isso pra ontem. Por ora, a situação é tão grave que falar disso, que é apenas uma reforma pontual radicalizada, nos faz parecer algum cosplay de comunista caricato”.

.

políticos escrachados e empresários idolatrados
Renato “Cinco” Athayde Silva, PSOL-RJ