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Quem se põe a favor da Escola Sem Partido usa como argumento uma simetria falaciosa, forrada de noções igualmente falsas: “se vc é contra a ESP, tem de ser contra a separação entre Estado e Igreja”, pois escola que toma partido é igual Estado com religião oficial.
São tantas asneiras condensadas num só chorume que fica difícil saber por onde começar.
Que seja em primeiro lugar o segte: a ESP não se volta contra as escolas, mas sim contra os professores – de humanas, que são “todos marxistas”.
Donde, em segundo lugar, ser mentira que a ESP não tem partido, pois se coloca em combate político-ideológico contra o que chamam de “doutrinação partidária” e, portanto, tomam partido.
Se uma coisa não é igual à outra, então resta explicar porque há (mais de um) partido político defendendo a ESP no Congresso e no MEC.
Fato é, e está esfregado na nossa cara, que o sentido do termo “partido” que a ESP combate tem muito mais a ver com o de posição político-ideológica que o de agremiação política.
É também notável o uso do termo “doutrinação”: pois ao redor da ESP gravitam pessoas e instituições que tomam partido de bandeiras religiosas.
Numa coisa eles estão corretos: doutrinação “de verdade” é a deles.
Entrementes, o melhor Estado para os religiosos é o Estado laico. Quem quiser adquirir ou trocar de religião pode escolher nas gôndolas do mercado da fé se vai virar evangélico, católico, espírita, hippie de butique ou astrólogo em Virgínia; e quem é empresário do ramo de indulgências não pode admitir um Estado que monopoliza o comércio religioso e dita qual é a única doutrinação oficial – a menos que seja a sua, claro.
Mas isso é uma questão de concorrência. Quanto mais o capital acumula, menos democracia e liberdade de venda e compra.
Pois bem, a ESP não quer uma escola laica, democrática e livre. Ela é, aliás, um sintoma da super-acumulação do capital religioso.
Ao contrário desse nivelador de pensamento, aquele que toma partido de uma posição político-ideológica (algo diferente de vender o peixe de um partido político) se põe a participar de um debate, onde coloca argumentações, faz e ouve críticas. Doutrinação é coisa de religião, e aí nada se discute.
Outra (e aqui temos a simetria explícita do argumento): escola não é Estado. Não se escolhe viver sob este como se escolhe aquela (pra citar uma única diferença, suficientemente gritante). E ainda tem que as escolas sempre tomaram partido político, ideológico e religioso, principalmente se são escolas “livres”, ou seja, privadas. Ao menos em tese, as escolas públicas são laicas e prezam pela diversidade. Ora, a ESP também toma partido pela privatização da educação.
Além disso, impedir que o professor tome partido é pretender um educador que não assume o que pensa e se coloca sobre o muro a respeito de questões que exigem uma posição, inclusive por uma questão moral (p.ex., será realmente imparcial, desejável, saudável e ética a posição que se pretenda neutra frente ao fato histórico da escravidão no Brasil?), ao mesmo tempo que imagina uma classe de alunos totalmente passivos e vulneráveis ao seu discurso.
Por fim, traçar uma analogia entre um professor sem partido e um Estado sem Igreja, i.é., sem partido em termos de religião, pressupõe uma identidade entre aparato estatal (que pretende se situar acima dos indivíduos e seus interesses particulares) e indivíduo, como se um professor devesse ser um “representante universal” da sociedade e o próprio conhecimento não fosse um campo de luta ideológica; e mais, basta intercambiar os termos da equação para se constatar o absurdo de se pensar um Estado que não toma partido em termos de política, paralelamente a um professor que deva se colocar acima – e que possa se manter ileso – à religião. Mas, na prática, o Estado toma partido religioso, tal como a sociedade faz, enquanto a ESP deseja e age politicamente em prol da doutrinação religiosa de professores e alunos. Ambos atuam em prol de uma exigência societária do capital, pela qual religião e política são postas, impostas e repostas como canga na moleira dos indivíduos.
Pois não há religião que não seja política, assim como a política é religiosa.
Em suma: a ESP é o projeto de uma educação política, religiosa e capitalista – a seguir à risca tudo aquilo que a educação burguesa é, e que a educação como formação humana não deve ser.
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Alguém pode pensar que defendo uma escola sem partido. Sim, defendo. Por isso mesmo é que tomo partido contra a ESP, e julgo ser nosso dever tomar partido em todas as questões pertinentes à cisão da sociedade em classes – sob determinação do capital, mantida por seu Estado político e aterrada pelas bençãos da religião.
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Você crê que a “Escola Sem Partido” tem mais apoio entre pessoas de ciências exatas? Parece-me que essas pessoas creem mais que existe um conhecimento puro (tipo a matemática/física), ao invés de várias manifestações e discordâncias de diferentes saberes (tipo sociologia/filosofia). Eu discuti com 2 colegas e 1 professor de exatas, e observei isto neles – a propósito, eles conseguiram me entender rápido, felizmente.
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Vc está certíssimo, Anders. Todos aqueles que chafurdam no positivismo acreditam em imparcialidade e num deus que garante a objetividade e eternidade da exatidão matemática, entre outros mitos. Transpostos para a área de humanas, é liberalismo pra baixo.
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Boa tarde. Texto muito legal. Louis Althusser criou as categorias “aparelhos ideológicos de Estado” pra tratar da disseminação do pensamento dominante nas diferentes instâncias e instituições ao nosso redor. Tal explicação, por si só, já é um golpe fatal ao Escola sem Partido, não é?
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Muito obrigado, Otávio.
Sobre Althusser, e seus AIE são evidência disso, há um retrocesso em relação ao Marx de 1842 (que, ironicamente, Althusser considerava ser o “jovem” idealista), na medida que Marx já identificava, contra Hegel e toda a história da filosofia, a sociedade civil e não o Estado o palco da História, o lócus da gênese de todas as determinações que constituem o mundo humano, entre elas as ideologias.
Abração
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