Radicalidade: moral e inteligência verdadeiramente humanas

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Porque tantas críticas à esquerda? Será que eu sou lateral-esquerdo do time da direita?

Não.

Fazer crítica à direita é o feijão com arroz, na medida que ela mesma já se autodesqualifica, ainda que a crítica seja necessária quando o óbvio precisa ser mostrado nas fuças dos inocentes (o que tem sido o caso há muito tempo, como viu Brecht).

A crítica à esquerda, na medida que ela pretende ser a representação política da luta pela emancipação dos trabalhadores, mas não faz jus a tal pretensão, deve ser implacável, de rigor e radical – por uma questão de honestidade teórica e prática para com os fins pretendidos; tão implacável, de rigor e radical quanto a crítica ao modo de vida burguês.

Radicalismo não é sectarismo ou dogmatismo, e sim a posição mais coerente e consequente com a verdade da necessidade de vida humana autêntica

Ser radical é ir à raiz das questões. Quem não é, bóia na superfície – e nada é mais conveniente, não só porque é fácil, mas porque as aparências enganam.

Assim como o reconhecimento dos princípios morais não faz necessariamente alguém ser um moralista, afirmar a existência de verdades nem sempre faz de alguém um partidário do dogmatismo.

Aliás, se “dogma” significa “verdade inquestionável”, o reconhecimento da validade de alguns “dogmas” – você pode abstrair estas aspas sem nenhum problema – é simplesmente um dever trivial (intelectual e moral, teórico e prático) de quem possui córtex cerebral.

Por exemplo, contestar algo como a verdade da afirmação “verdades existem” não faz de um sujeito o campeão da crítica, mas sim da pura e sórdida burrice.

Ater-se a princípios morais ou dogmas, na crença de que basta “desdobrá-los” e/ou “aplicá-los” nos fatos concretos para compreendê-los, eis o que produz moralismo e dogmatismo; eis aí a mistificação (do que era razoável) que merece ser alvo da crítica.

Todo crítico é um relativista, mas nem todo relativista é um crítico. A diferença entre eles é que o crítico só é capaz de fazer a crítica porque parte do reconhecimento de um critério, e faz a relação das coisas com ele; já o relativista é aquele que faz “crítica” do critério e, por isso, relativiza tudo, de modo a cair no relativismo absoluto – donde este relativista se mostrar um absolutista, exatamente o que ele imaginava se opor.

Um cético só se faz importante para o saber e para a ação na medida que reconhece verdades das quais ele parte; ceticismo absoluto é dogmatismo.

A propósito: nem todo “ismo” é abstrato, nem toda crítica é concreta. A crítica aos “ismos em geral” é, ela mesma, um… criticismo.

Nem tudo que é simples possui a virtude da clareza; por vezes, possui apenas a pobreza da simploriedade.

Pois a realidade é complexa; mas nem todo pensamento complexo é verdadeiro. Por vezes a dificuldade da idéia reside tão somente em sua falta de conteúdo e de racionalidade.

Tergiversação, rodeios e fanfarronice são formas da falsidade, ou melhor, de travestir esta com a aparência da erudição, a ostentação do acúmulo de “capital cultural”, reles manipulação mercantil de vocábulos e cultivo academicista de erva daninha nos vasos da auto-ilusão.

Donde a honestidade intelectual ser revolucionária. À esquerda jamais caberia edulcorar o discurso para este se tornar palatável, via simploriedade e eufemismos. Mas, enquanto seus fins são políticos e a política não lhe servir apenas enquanto um meio, toda crítica a ela deve ser feita e ainda será pouca. 

A História não absolverá os covardes.

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revolucao

 

O que é COMUNISMO, afinal? – Para além do senso comum

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Em homenagem aos 200 anos de Karl Marx

 

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Comunismo NÃO É um sistema.

Comunismo é uma forma de sociabilidade que há de ser vivida sobre o pressuposto da produção e reprodução (dos indivíduos e da sociedade) calcada numa forma de propriedade (apropriação dos meios e fins do trabalho) de caráter social, donde o comunismo ser um socialismo.

Por esse mesmo motivo, o comunismo não é e não pode ser falho, pois sociabilidade não possui função.

Quando alguém acredita que o comunismo “não funciona”, é porque tem uma noção bem fantasiosa do que seja a sociedade: é uma coisa, ou melhor, uma outra coisa que os indivíduos associados – uma sociedade existente independente dos indivíduos, um “sistema” pairando sobre eles. Durkheim merecia ver isso!

Comunismo e capitalismo não são coisas, não são “modelos”, “sistemas”, esquemas, planejamentos de engenharia social ou anti-social, mas sim formas distintas de associação entre indivíduos, modos herdados e posteriormente reproduzidos por eles para organizarem entre si – no intuito de, simplesmente e antes de tudo o mais, sobreviverem – suas relações com a natureza; ou seja, o trabalho, a divisão do trabalho, a divisão dos produtos do trabalho etc.

Portanto, comunismo e capitalismo não são máquinas – que funcionam ou não, pois não são algo distinto dos indivíduos, um algo que “tem de funcionar”.

Também não estamos falando de formas de Estado, de regime político, governos etc. – aliás, assuntos que só os puros de alma crêem que devam ser pensados em termos funcionais, se é que funcionam de qualquer jeito. Quer dizer, funcionam: especialmente quando parece o contrário.

Estamos falando de pessoas vivendo suas vidas e o tempo todo em relação umas com as outras. Será que uma pessoa deve ser avaliada na medida em que “funciona”?

Trata-se de formas de sociabilidade, de um fazer-se cotidiano e entre todos os demais (Marx fala da vida prática de homens vivos e ativos); daí que a avaliação de uma forma social só pode ser realizada com seriedade se levar em conta a sua história, sua localização geográfica, suas relações econômicas e políticas internas e com as demais sociedades etc. 

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Não nos preocupemos, por exemplo, em virar uma “nova Venezuela” ou Cuba. Isso só seria possível apagando tudo que faz o Brasil, a Venezuela e Cuba serem exatamente o que são – Brasil, Venezuela e Cuba. Nem um jogador de WAR pensa de maneira tão rasa.

Se as tentativas (supondo que realmente foram) dos países ditos socialistas do século XX em transformar a sociedade naufragaram, não é porque os planos de Marx estavam errados. Primeiro, porque Marx não tinha tais planos; e depois, porque esses países existiam na realidade e não na fantasia.

Ao contrário do que reza o empirismo trivial dos “críticos dos sistemas”, a realidade é muito mais que aquilo que está estampado em nossas retinas. É assim que Tomé virou crente: olhou o céu e viu o Sol girar em torno da Terra. E depois viu a Terra girar em torno de seus olhos.

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Se alguma “ciência” social qualquer considera socialismo e capitalismo como “sistemas sócio-econômicos”, é porque, antes de tudo, além de estar descompromissada com a verdade, está compromissada com seus financiadores. A razão crítica lhe é socialmente vedada.

O relacionamento cotidiano entre indivíduos, a partir do que herdam das gerações passadas (história), em meio a determinados espaços geográficos, onde organizam o trabalho (relações econômicas) e dividem os papéis na produção e os direitos no consumo (política) nada tem de sistemático, muito menos é um modelito social. Estamos falando da prática viva de indivíduos vivos.

E quanto ao aspecto teórico: a ideologia comunista não é um TED ou um stand-up de esquemas e propostas. É uma crítica à forma atual do indivíduo viver em meio a outros indivíduos, no interior da qual se vislumbra uma saída da monstruosidade moderna. 

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Comunismo não é uma “nova política” para aplicar por sobre o capitalismo (a noção mesma de aplicação de teorias, modelos etc. já denuncia a tremenda falta de sentido ontológico que dá consistência ao mingau produtor das sinapses críticas). Por pensar assim que os austrólogos imaginam refutar Marx por meio de problemas que só fazem sentido numa economia capitalista (como, p.ex., o “cálculo econômico” – que o capitalismo não parece saber fazer muito bem, se é que pretende). Projetam no comunismo o que não ultrapassa a caixinha que encerra seus pensamentos.

Comunismo não é alternativa de organização econômica, política ou ideológica do mercado. Não é produção para a troca. Comunismo é sociedade de consumo. Produção para atender as necessidades de consumo dos indivíduos. Ao contrário disso, e do que circula no senso comum, capitalismo é o exato oposto de uma sociedade de consumo; é sociedade mercantil. No capitalismo o consumo dos indivíduos e os próprios indivíduos simplesmente não interessam; importa unicamente valorizar o capital, custe a humanidade e a natureza se preciso for.

Comunismo não é quando o trabalhador tem propriedade dos frutos de seu próprio trabalho; a partir da qual, troca seu produto por outro que necessita mas não produz.

Não se trata de ter posse privada nenhuma do que se produz, com fins a usar o produto como capital ou dinheiro, pois do contrário estaríamos na situação da troca enquanto escambo. Ora, no comunismo não há troca ou produção para o mercado, e antes de tudo porque, nele, ambos são dispensáveis. Uma produção que visa o consumo não mede os produtos entre si, ou seja, prescinde da existência do valor. O que determina a economia  são as necessidades do indivíduo, e elas não são condicionadas por suas capacidades manuais e intelectuais de produção. A satisfação das carências do indivíduo não se subordinam ao que ele pode e consegue produzir.

A economia comunista é baseada no compartilhamento dos produtos de trabalhos que se desenvolvem de acordo com as necessidades, os interesses e gostos dos produtores. Tal compartilhamento é social, e não coletivo. Não há mesmo a necessidade de qualquer contato físico entre os indivíduos que disponibilizam os produtos. Estamos falando de uma sociabilidade pós-capitalista, e não tribal.

O compartilhamento social é uma utopia ou já se entrevê na realidade?

Assim como meio de produção não se confunde com o produto final, tão logo o indivíduo se apropria de um bem designado ao seu consumo pessoal (pois, no comunismo, todo produto se destina ao consumo, ao contrário do que ocorre na sociedade mercantil moderna), não há porque contestar seu direito de posse e usufruto sobre ele. Aliás, conceber o questionamento de tal direito se torna puro nonsense.

Nota bene: não se trata de dizer que “se a classe trabalhadora tudo produz, a ela tudo pertence”; pois o que é isso, uma classe social, a quem tudo pertenceria? Como poderia uma classe social ser proprietária de quaisquer bens, como uma classe social poderia usufruir deles? Por outro lado: como a produção seria propriedade de cada indivíduo da classe trabalhadora? Como se determinaria a distribuição da parte de cada um no interior da classe trabalhadora sem reduzir o indivíduo ao mero dispêndio de sua força em certa quantidade de tempo trabalhado – ou haveria outra medida do que poderia ser seu direito? Pois essa redução configura a determinação comum aos indivíduos da classe. Essa redução é a redução dos indivíduos à classe, sua abstração enquanto apenas trabalhadores, meros “proprietários” ou provedores de mera força de trabalho. E toda essa questão quando o que interessa é acabar com as classes sociais!

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Comunismo não é uma forma diferente de Estado, é a destruição ou a caducidade do Estado.

“Ora, mas e a ditadura do proletariado?…”

No Manifesto Comunista de 1848 – este que foi o divisor de águas da história moderna, o ano que uma revolução proletária varreu toda a Europa, tornando reacionária e mesquinha a até então iluminista e esclarecida classe burguesa, marcando o início da decadência da sociabilidade do capital –, Marx diz:

— “Horrorizai-vos porque queremos abolir a propriedade privada. Mas em vossa sociedade a propriedade privada está abolida para nove décimos de seus membros. E é precisamente porque não existe para estes nove décimos que ela existe para vós. Acusai-nos, portanto, de querer abolir uma forma de propriedade que só pode existir com a condição de privar de toda propriedade a imensa maioria da sociedade.

/…/ a primeira fase da revolução operária é o advento do proletariado como classe dominante, a conquista da democracia.

O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível o total das forças produtivas [grifos meus: estamos longe de qualquer hobbesianismo aqui].

Isto naturalmente só poderá realizar-se, a princípio, por uma violação despótica do direito de propriedade e das relações de produção burguesas, isto é, pela aplicação de medidas que, do ponto de vista econômico, parecerão insuficientes e insustentáveis, mas que no desenrolar do movimento ultrapassarão a si mesmas e serão indispensáveis para transformar radicalmente todo o modo de produção”.

Eis aí a democracia como o próprio modo de exercício da ditadura dos trabalhadores. Seu caráter será de autêntica democracia na proporção mesma em que essa ditadura for bem sucedida no que interessa, sua finalidade sine qua non, que lhe dá seu tom próprio e específico: investir o poder político contra a propriedade privada que sustenta a dominação burguesa.

Por fim, emancipada do arraigado moedor social de carne humana, a propriedade privada, os indivíduos podem abolir o tolhimento que as classes sociais, o mercado, o dinheiro, “a economia” etc. lhes impõem, e a sociedade pode se expurgar do gigantesco representante oficial do capital, o Estado:

— “Uma vez desaparecidos os antagonismos de classe no curso do desenvolvimento, e sendo concentrada toda a produção nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político. O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui forçosamente em classe, se se converte por uma revolução em classe dominante e, como classe dominante, destrói violentamente as antigas relações de produção, destrói juntamente com essas relações de produção as condições dos antagonismos entre as classes e as classes em geral e, com isso, sua própria dominação como classe.

Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação – onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos”.

É preciso atentar para algo essencial: estamos falando de revolução.

Não há revolução sem que seja preciso tomar o poder material do Estado, porque do contrário, o Estado irá sufocar a revolução, tal como faz com a mais ínfima greve. O Estado sufoca greves porque o Estado é a antítese da revolução, e uma greve é o pré-vestibular desta.

De fato, se não houver o contexto de uma revolução dos trabalhadores, tomar o poder é o mesmo que manter o poder, pois ele apenas muda de mãos. Ora, mas aí a ditadura “do proletariado” não seria ditadura do proletariado, seria ditadura de um grupo em torno de um ditador.

A finalidade da ditadura do proletariado, ao contrário (isto é, no contexto de uma revolução), não é política – no sentido em que visa apenas tornar ineficaz “a oposição” (enquanto mera oposição política) –, e sim social: trata-se, imediatamente, de tornar ineficaz a contra-revolução; mas, acima de tudo, trata-se de sufocar as forças despóticas do capital como um todo. Daí ser o único caminho real, não-utópico, da realização de uma verdadeira democracia, assentada na soberania dos trabalhadores; e esta é a única soberania legítima, uma vez que é calcada nos legítimos produtores do mundo social.

Isso é a revolução, da qual a ditadura do proletariado é apenas um meio. A finalidade imediata da ditadura do proletariado não é política, senão enquanto visa acabar com a própria política. O que pressupõe sua finalidade maior, condição necessária daquela, a socialização da propriedade privada (e eis aqui o que é o essencial, onde está posta a diferença entre comunismo e anarquismo; pois este mira a copa estatal como determinante da raiz social, quando não simplesmente ignora esta – e não é por outra razão que o anarquismo é apropriado pela direita e vira proposta de um capitalismo à là Somália).

Donde a democracia realmente social deve finalmente terminar dissolvendo a si mesma, última forma de Estado e regime de governo, na medida em que o fim da propriedade privada (e portanto das classes sociais) os torna obsoletos, caducos.

Pois a organização da sociedade por quem a produz e reproduz é precisamente a desintegração das classes sociais, ou seja, da parasitagem exercida por quem não trabalha sobre quem trabalha. Não há mais sustentação real para existir um aparato de dominação e nem o exercício desta.

O fim da propriedade privada é não apenas a finalidade, mas também o fim da ditadura do proletariado. E a revolução social é o meio para tornar social a apropriação dos meios e fins da produção. E não haverá outro. 

Sem revolução, nada feito.

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Alguém pode perguntar: “que garantia terei que um governo dos trabalhadores não irá se transformar em uma outra ditadura de novos senhores?”

Nenhuma.

“Garantia” é uma noção criada pelo e usada para o mercado, nada mais que uma promessa para conquistar consumidores e vencer a concorrência. E nem assim o comércio garante realmente alguma coisa (pra qualquer problema existe a “justiça” do consumidor, na qual o indivíduo será mais um entre milhares a tentar reverter uma situação na qual foi lesado). “Garantia” é, portanto, uma noção mais fictícia que real. Nada que existe é garantido.

Mas uma coisa é certa: as galinhas só passam a tomar conta do galinheiro quando este galinheiro está organizado o suficiente para expulsar as raposas que desde sempre o comandaram.

Portanto, a ditadura do proletariado pressupõe uma abertura real à participação popular, sem a qual ela não acontece. E isso não é nada, mas menos ainda é pouco.

Não há ditadores na ditadura do proletariado. A revolução é que orienta o processo: trata-se da sociedade se auto-organizar, a ponto de se despir da necessidade de uma esfera acima dela a comandar-lhe.

Eis a tarefa histórica que devemos a nós mesmos e às futuras gerações. Herdamos esta dívida, e ela só tem crescido, enquanto o prazo se esgota. Pelo que estamos aqui, senão pela humanidade?

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Marx e Engels na tipografia do Manifesto de 1848

Coletivismo, estatismo, ateísmo, anti-humanismo, economicismo e historicismo: lendo Marx ao contrário

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Quando as filosofias e filosofemas penetram o senso comum, viram ideologias ou passam a constituir retalhos delas.

Ideologias podem ser mais ou menos consistentes. O senso comum é um mix delas, além de conter outras idéias não-ideológicas, provindas da prática imediata, do empirismo e de restolhos ideológicos do passado.

É por isso que devemos fazer uma ou outra dissecaçãozinha básica daquelas filosofias (além das mitologias etc). É isso que faz com que tenha importância a crítica a certos autores, mesmo que não passem de imbecis acadêmicos.

Marx não criticou Bruno Bauer, Max Stirner, Proudhon, Say, Mill, Bastiat e tantos outros por esporte ou sadismo, quando talvez apenas Kant, Hegel, Smith, Ricardo etc. mereceriam a sua atenção.

E agora o senso comum, alimentado com esse tipo de capim e suas novas derivações, absorveu certas críticas feitas a Marx que lhe imputam um coletivismo, um estatismo, um ateísmo belicoso, um anti-humanismo, um economicismo e um historicismo, mil outros etc.

São tantos os que afirmam e reproduzem tais idéias que não há como citar nomes. Mas o que importa são aquelas e não estes.

Marx não é um coletivista. Ao contrário, toda a sua obra afirma a necessidade de se emancipar os indivíduos das limitações impostas a eles pelas classes sociais, mercado, divisão do trabalho etc.

Mas o individualismo de Marx não se confunde com o burguês, que isola o indivíduo no egoísmo (como algo próprio de sua “natureza”) e o contrapõe à sociedade. Para Marx, ao contrário, o indivíduo só se realiza e efetiva seus potenciais no interior da sociedade, na ampliação das relações do indivíduo com o mundo.

O mesmo quanto ao humanismo: enquanto aquele que procede da mentalidade burguesa é idealista, utópico, egoísta e reflete o fetichismo mercadológico dos “homens de igual valor” e a tolerância do ecumenismo do dinheiro, o humanismo marxiano afirma a emancipação dos indivíduos em uma sociedade autogerida.

Onde não cabe, evidentemente, nem coletivismo reacionário, nem coletivismo estatal, burguês. Tomar o Estado é necessário simplesmente porque detém poder material, que não ficará sobre o muro no caso de uma revolução. É preciso rachar o Estado e voltar seu poder contra aquilo para o qual ele existe como protetor. Senão, fiquem aí sonhando com suas miseráveis comunidades hippies.

O fim da religião, tal como a conquista ou destruição do Estado, não é o ponto central do processo revolucionário. Marx não faz crítica da religião. Para ele, não interessa a Sagrada Família, mas sim aquilo que faz a família profana se projetar no além: é o aquém da sociabilidade corrompida pela propriedade privada que demanda a ilusão de se superar o “vale de lágrimas” no pós-fim, tanto quanto demanda a força do Estado para manter-se como areia movediça sobre a qual a sociedade se assenta.

Tornado estéril o solo da propriedade privada, e estabelecida a sociedade sobre a propriedade social dos meios do trabalho, a religião e o Estado perdem razão de existir.

Isso acontecerá por força de uma economia entendida como “sistema” (que não é outra senão a imagem do mecanismo do deus-mercado e sua “mão invisível”), ou de uma meta acima da história (tal como ensina a religião) a nos guiar? Se for assim, basta cruzar os braços e esperar a revolução me emancipar e fazer de mim um indivíduo autônomo. Nota-se a coerência dessas idéias com as demais imputações; mas para acreditar nelas é preciso ser pouco mais que um vegetal trancado num cubículo de classe média.

Há muito mais pra ser dito sobre essas coisas, mas não há quem leia dissertações ou livros num blog. Para quem quiser, indico algumas leituras – e trocamos as figurinhas depois.

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capitalismo e individualidade 2
Pode acreditar nisso, abiguinho

Ateísmo vs. Agnosticismo

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Facebucking pela rede (anti-)social afora, acabei entrando numa página de ateus e esbarrando numa conversa recheada de comparações entre o “ateísmo gnóstico” – ou ateísmo “forte”, que seria a afirmação da certeza da inexistência de deus – e o “teísmo gnóstico” – ou, simplesmente, : afirmação da certeza da existência de deus.

Os argumentos diziam que estas “certezas” são meras crenças, pois não há como provar cientificamente nem a existência, nem a inexistência de deus.

Postos nesses termos, até que faz o debate parecer ter sentido.

(Vejam que, portanto, o ateu “forte”, o ateu pra valer, é um crente.)

Contra o gnóstico, seja ateu ou crente, se ergue vaidosamente a figura do humilde agnóstico: trata-se do ateu ou crente que afirma sua dúvida acerca de sua capacidade de conhecimento e de qualquer possibilidade de se obter certezas, ao menos nesse assunto.

(E, assim, fica no ar a conclusão de que o crente “fraco”, ou teísta cético, é um ateu.)

Como se pode notar, tudo aqui gira em torno dos sujeitos e da capacidade humana de conhecimento das coisas.

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Sejamos audaciosos: vamos procurar ver como a questão pode ser apreendida do ponto de vista das próprias coisas, ou melhor, da realidade das coisas, que é ou deve ser a mesma realidade dos sujeitos.

Antes disso, devemos lembrar que a pergunta acerca da existência – de deus e de tudo o mais – não pertence ao âmbito de nenhuma ciência, mas sim da ontologia. Nenhum químico, nenhum geógrafo, nenhum matemático coloca em questão o que seja a realidade, pois não se trata de assunto da química, da geografia ou da matemática, etc. Cientistas têm mais o que fazer.

Nosso assunto aqui é filosófico.

Para ser breve como um post de facebook: por definição, o que existe é objetivo, efetivo e repleto de determinações (i.é., concreto), donde possuir aquelas pelas quais se faz sentir. P.ex.: o raio X, tal como o ar, é invisível, mas é possível detectar sua existência através de sua ação, seja por meio da impressão de chapas, seja por observar seus efeitos no desenvolvimento de tumores. Em outras palavras, ele apela aos nossos sentidos, ainda que nossa limitada visão não capte senão os indícios de sua existência.

Nota bene: não estou entrando em nenhuma problemática gnosiológica, mas apontando para a ocorrência de uma relação objetiva que se instaura entre a coisa e o nosso próprio ser (a partir da qual, e somente então, se põe a questão da possibilidade de conhecê-la).

Em outras palavras, a objetividade daquilo que existe está justamente nesse potencial (e na efetivação deste) em constituir uma relação com as outras coisas e conosco também. Ora, isso é algo que se impõe a nós; ou seja, não depende de nenhuma subjetividade para existir e se estabelecer. Portanto, não se trata de uma questão de (limites do) conhecimento.

Alguém pode, e vai, perguntar: é possível tratar do ser sem, ao mesmo tempo (ou antes), tratar do conhecimento do ser?

Eis que entra em cena a filosofia moderna ou, se se quiser, burguesa. A partir da questão acima, ela põe a subjetividade como determinante da objetividade (“ego cogito, ergo sum qui sum” – semelhanças com a Bíblia podem ser apenas coincidências), quer dizer, subordina a questão ontológica à gnosiologia/epistemologia ou simplesmente a deixa de lado.

Assim é que o ateísmo passa a ser um agnosticismo, isto é, que se funde e se confunde com a problemática gnosiológica.

Em outras palavras, o que era questão de bom senso materialista, fincado na objetividade da própria vida humana em sua prática cotidiana, se torna especulação idealista acerca do acesso ou da barreira postos ao pensamento sobre a realidade.

O agnóstico tem dúvidas acerca da realidade porque tem uma crença inabalável na idéia de que a consciência é o ponto de partida para a verdade. O último resquício de sanidade de Descartes, as idéias adventícias, é ultra-remastigado até virar solipsismo em Berkeley, ceticismo em Hume, bolha de fenômenos em Kant e positivismo depois. O mundo girando em torno do umbigo do idealismo.

Isso não é senão o abandono do ateísmo mesmo.

Se ainda existe ateísmo, é graças ao materialismo francês e seus herdeiros; pero no hay chances de entrar em detalhes sobre essa história aqui.

Interessa é notar que hoje o ateísmo, ateísmo in iure et facto, se divide em dois: um que chega e estaciona em Darwin, julgando a sociedade humana como uma extensão da natureza (that’s the World WILD Web, e dá-lhe biologismo por todos os lados – via de regra, é o ateísmo que se manifesta ideologicamente no interior do espectro político de direita); enquanto o outro vai até Marx e trata a sociedade humana como uma nova forma de ser, uma emergência inédita de nova realidade em meio à natureza, sem se confundir com ela.

Graças ao seu materialismo grosseiro, ignorante e inconseqüente, a primeira forma de ateísmo coqueteia livre e serelepe com o idealismo, donde frequentemente se desfazer em agnosticismo.

Enquanto isso, a outra forma – pode parecer surpreendente – não visa destruir o teísmo, mas compreender sua gênese e razão sociais de ser; quando muito, lutar contra seu aspecto ideológico na arena da política, i.é., combater a idéia ali onde ela se faz ação. Pois ele entende que o teísmo, a consciência mítica, a religião e o idealismo não se auto-sustentam, mas existem por conta de uma determinada forma de sociabilidade em que o estranhamento se coloca na relação dos indivíduos com a natureza e especialmente entre si próprios.

De modo que, em verdade vos digo, não é tanto um contrassenso almejar, e até conseguir, provar a não-existência de deus, desde que tal prova tenha caráter ontológico, e não científico. Entretanto, a idéia de que o mundo muda a partir da crítica – seja lá ao que for – é ingênua. Não é o ateísmo, a ontologia ou a ciência que irão acabar com a consciência religiosa das pessoas, visto que essa consciência provém do mundo em que elas vivem; afinal, “a consciência” nada mais é que a consciência que temos do mundo. Ora, o mundo atual demanda a todos nós que anestesiemos nossa sensibilidade, e isso se consegue não apenas com química, mas também com mitologia (e ambas rendem muito dinheiro, na medida que muitos são os que atendem a essa carência de auto-castração, a esse desejo de desdesejamento, visando satisfazer as suas próprias necessidades humanas cortando estas em sua raiz). Deus é, portanto, antes de tudo um produto e um problema sociais.

Pois o mundo atual é o mundo da sociabilidade do capital ladeira (ou abismo) abaixo, rumo à autodestruição. Isso é o que explica porque, apesar de tanto desenvolvimento científico alcançado, estamos regredindo cada vez mais em termos sociais e ideológicos, ou melhor, em termos humanos.

Este entendimento, como se pode notar, termina por ultrapassar o próprio ateísmo e se torna entendimento histórico – “ciência da história”, nos termos de Marx; no senso comum acadêmico, marxismo (um termo que se torna tão popular quanto maior a ignorância a seu respeito).

(Confira os textos “Racionalidade e falsidade socialmente necessária da Fé” e “A importância do Materialismo para a práxis de esquerda“.)

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Enfim: o ateísmo não é a crença na inexistência de deus, derivada de uma crença na possibilidade de se provar (ainda mais por meio da “ciência” – qual delas?) que deus não existe. Ao contrário, ele simplesmente descarta tal “hipótese” como fantasia infantil.

E não é exatamente da mesma forma que qualquer um lidaria com o “problema” da existência de outros tantos “seres imaginários”, tais como duendes? Mas se o agnóstico alegar que esta seria uma “falácia da falsa analogia”, uma vez que duendes são idéias “materiais” (i.é., originados numa composição elaborada pela imaginação de figuras extraídas da experiência sensível, como as de anões, orelhas pontudas, cor verde etc.), enquanto Yahweh é metafísico, resultante de nossas “falhas cognitivas” e de nossa “necessidade de respostas”: tanto pior pra Yahweh e quaisquer outras “entidades metafísicas”, por tudo isso ainda mais absurdas que duendes.

(Para discutirmos o que é isso, a idéia de deus, e como se fabrica tal idéia, confira também: “Você não pode provar que Deus não existe nem o Minotauro“, “Perfeição e Existência de Deus segundo Descartes: uma prova falaciosa“, e ainda “Ciência e Religião: Diádocos da Alienação“).

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Para fechar o post, transcrevo e debulho um trecho do comentário de um dos debatedores – que procurava distinguir, mas também relacionar, ateísmo e agnosticismo, e justificar ambas as posições. O sublinhado é meu:

– “Não sei da existência de algum deus (agnóstico) ao mesmo tempo em que não vejo motivos pra acreditar que algum exista (ateu)“.

Perfeito. Justamente porque “não vejo motivos pra acreditar que algum deus exista” (e isso decorre do fato de a posição ateísta partir da realidade na qual, por meio da qual e com a qual nós existimos; e somente esse, é evidente, pode ser um ponto de partida racional), não faz nenhum sentido se indagar acerca das possibilidades de saber da existência de algum deus – tal como faz a posição agnóstica, idealista que é, ao abstrair a realidade e a vida do próprio especulador de idéias.

Donde o agnosticismo, ao acreditar que a questão se dilui na “incapacidade humana” de provar isso ou aquilo, não se põe exatamente “em cima do muro” entre ateus e crentes, mas sim na pocilga da tibieza – lugar próprio de toda sorte e azar de covardes, conciliadores, sicofantas e demais “apartidários” -, o que é pior que estar entre ateus de direita; pois lhe apraz roçar a cachola no lamaçal ridículo dos pseudoproblemas de um pensamento isolado da prática.

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cardápio do ateísmo agnóstico
Eis aí o cardápio eleitoral da gnosiologia: escolha seu pastor.