Método dialético de formatação do pensamento marxista vulgar

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Outro dia eu li num grupo virtual de estudos uma declaração impecável sobre a formação teórica dos stalinistas (tanto os assumidos quanto os que se escondem sob o termo “marxistas-leninistas”).

Em resposta às acusações feitas contra a realpolitik dialética por seu rebaixamento intelectual e seu desprezo por Marx, um teórico do praticismo esquerdista formulou o seguinte:

<< “Vulgar isso”, “vulgar aquilo”, mas dificilmente alguém consegue explicar toda essa confusão. O esquema é ler Engels e Marx do mais básico, depois ler Lenin, Stálin, Trotsky, Mao e estudar as experiências dos países do chamado “socialismo real”, desde a economia até a luta de classes que rolou. É muita coisa, mas com um nível desse de briga de torcida o cara não tira nada proveitoso. >>

Primoroso!

(Pena que fumaram o livro verde do Khadafi e rabiscaram o manual didático do King-Kung coreano até ficar ilegível – o que, por outro lado, nada afetou sua inteligibilidade.)

Portanto, o “esquema” é ler “o básico” de Engels e Marx e depois partir pra suas sofisticações.

(E aí deve-se “estudar as experiências” dos países do chamado socialismo real, “desde” a economia “até” a luta de classes. Como se não fossem coisas totalmente imbricadas!)

Assim, para rechaçar a vulgaridade, aplica-se a sofistaria. Mas é aquele dito “básico de Engels e Marx” que nada mais e nada menos constitui o caroço racional da formatação do pensamento militante – para a atuação aguerrida nas bocas de urna do sindicato nacional dos engraxates. Senão, vejamos.

Quando diz haver um “básico de Engels e Marx”, nosso formador de “quadros” quadrados confessa já existir uma determinada seleção dos textos. O que é que circunscreve essa seleção?

Fosse um critério passível de se extrair dos próprios escritos, eles já teriam sido elaborados segundo ele.

Mas não é. O critério é exterior e indiferente ao que Engels e Marx se dedicaram a redigir, certamente não por diversão.

No que é possível de se dialogar com a turma do básico invulgar, não é difícil de se perceber que seleção de textos é essa: primeira e segunda partes do “Manifesto Comunista” (o resto é lorota), o rascunho sobre Feuerbach da “Ideologia Alemã” (sequer desconfiam que o livro tem mais 400 páginas), o posfácio à segunda edição de “O Capital” (que resume miraculosamente os 3 livros da obra) e um punhado de pequenos textos de Engels – especialmente aqueles em que o “segundo violino” se lança à carreira solo e se arrisca a tocar intervalos para substituir o insubstituível, fazendo harmônicos soarem como guinchos e arrebentando umas cordas: por exemplo, o ensaio do “macaco que vira homem” e os capítulos do “socialismo de laboratório” e da “metafísica dialética” retirados do “Anti-Duhring”.

Este é o básico. Mas nosso revolucionário intelectual nem pretende tanto; segundo ele, o “esquema” de leitura do ainda “mais básico” já é suficiente para se conhecer Marx e Engels. Quem quiser avançar para o marxismo hard level e “suprassumir” o estágio rústico dos autores básicos pode simplesmente despejar por cima de suas singelas noções as contribuições profundamente grosseiras de Stálin e congêneres.

Eis aí como se faz o Frankenstein “marxista-leninista”. Nada de ler o que realmente importa, bastam as sinopses e o que é redigido depois para servir a elas como notas de pé de página.

É o mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, versão sub-proletária.

Ou antes, é o tradicionalíssimo marxismo mimeografista das agremiações estudantis de creches municipais. Além de servir pra deixar a esquerda ainda mais burra, faz com que os trabalhadores acreditem que as “críticas” da direita a ele são “refutações demolidoras” contra Marx.


PS.: Alguém pode me acusar de estar batendo num espantalho, ao criticar o discurso de uma caricatura. Ora, as caricaturas ideais acentuam os traços de um pensamento tanto quanto acontece no caso dos desenhos: os aspectos positivos e negativos se ressaltam, e sua difusão no senso comum é maior. Não é por outra razão que Marx combate Stirner, Proudhon, Bastiat etc. Ainda assim, quem quiser conferir uma análise do pensamento do próprio Stálin, eis o link: Stalinismo: idealismo e praticismo.

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marxismo simpsoniano

Uma nota sobre o misticismo da noção de “ideologia” no marxismo vulgar

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Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito e o conduzem até o fim“.

Marx: Prefácio de 59 (grifos meus)
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Por que “o pobre” vota na direita?
 
Por que os trabalhadores não se revoltam contra sua própria condição de dominados?
 
O que faz com que “não percebam” a desigualdade social como injustiça?
 
Essas e outras questões afins são postas e respondidas pelo marxismo vulgar a partir do “conceito de ideologia de Marx”, que explicaria a dominação social e hegemonia política da classe burguesa sobre a sociedade como um todo.
 
Trata-se de uma tese ela mesma tão dominante e hegemônica no marxismo quanto simplória e idealista.
 
A Ideologia” – não uma ideologia, mas a Ideologia, em maiúscula mesmo – torna os trabalhadores resignados quando encobre a exploração presente nas relações sociais com a aparência (forjada) de sua suposta naturalidade, com o que a Ideologia logra escamotear o fato da exploração ser, ao contrário, resultado da própria sociabilidade.
 
Mas o mistério começa quando perguntamos: como é que ela “cola” na cabeça deles?
 
(A título de provocação: antes do capitalismo havia também uma “ideologia feudal” que mascarava a servidão dos trabalhadores na corvéia, de modo a impedir que eles não se rebelassem contra ela?)
 
Nota-se que a tese da dominação por meio da “Ideologia” – de lavra neo-hegeliana e combatida por Marx em “A Ideologia Alemã” (um dos livros mais ignorados entre os marxistas em geral) – não tem uma palavra sequer a dizer quanto à chantagem do assalariamento, ou melhor, à separação de trabalhadores e meios de produção. Por isso mesmo é que ela possui um aura místico, nas brumas do qual se mantém e, na confusão teórica, se “explica”.
 
O pior é ver isso sendo vendido como marxista – quando o marxismo busca, ao contrário, compreender as produções ideais a partir das relações sociais de produção, donde jamais admitir a idéia de uma fantasmagoria flanando sobre os indivíduos e determinando suas ações de forma descolada de suas vidas materiais ou decalcada em seus cérebros.
 
Ao mandar o materialismo às favas, o marxismo vulgar não perde apenas a total capacidade de compreensão do que sejam as ideologias, mas também a possibilidade de simplesmente identificá-las enquanto ideologias. Daí pra frente, tudo se torna gato pardo na noite escura: a práxis se torna praticismo mecânico e realpolitik oportunista, e o próprio marxismo vira um Frankenstein teorético qualquer.
 
Exemplos não faltam.
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* A propósito da tradicional idéia de uma “ideologia dominante” na sociedade capitalista, a “ideologia burguesa”:

Não existe “a ideologia burguesa”, e sim várias ideologias burguesas. Qual delas é a dominante?

Ao meu ver, é difícil dizê-lo. Principalmente porque o “senso comum” está impregnado de muitas ideologias (inclusive não-burguesas), porém nenhuma delas está presente nele por inteiro, senão em pedaços. Poucas pessoas procuram estudar as ideologias e conhecê-las integralmente.

De modo que talvez pudéssemos dizer que o dominante no senso comum são retalhos ideais de procedência burguesa, mas isso não significa que sejam partes de uma mesma ideologia. Por exemplo, encontramos nele um bocado de idéias realistas, mas pragmáticas (derivadas das relações práticas mais imediatas, empíricas, da sociabilidade mercantil), ao lado dos idealismos mais místicos; ou então, idéias que fazem apologia direta do mundo atual ao lado das que fazem outra forma dessa apologia, por via “crítica”, negando o paraíso da primeira forma ao mesmo tempo que toda via de superar tal mundo; cientificismos e subjetivismos; positivismos e pós-modernismos; flower-power e punk; ateísmo e agnosticismo; Keynes e Mises; etc. 

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PS. Marx não fala em lugar algum que “a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”, mas sim que

As idéias da classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes; ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão submetidas em média as idéias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As idéias dominantes não são mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, ou seja, as idéias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência e, portanto, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão, e consequentemente, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de idéias, e regulam a produção e a distribuição de idéias do seu tempo; donde as suas idéias são as idéias dominantes da época“.

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[Confira este outro texto, em que relaciono ideologia, alienação e fetichismo: Alienação: fenômeno objetivo social, e também este aqui, a respeito da relação consciência – vida cotidiana: Nada mais natural que um pobre de direita]
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Stalinismo: idealismo e praticismo

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Constantemente eu escuto ou leio stalinistas (se se preferir, “marxistas-leninistas”) defenderem a falsa idéia de que Marx teria afirmado que a relação entre teoria e prática é de subordinação da primeira à segunda.

Donde a autocomplacência com a própria pequenez intelectual gerar juízos contra o trabalho teórico de rigor, que não passaria de divagações ao vento, academicismo etc., puro privilégio burguês.

 
Tanto é verdade que a teoria se subordina à prática quanto o contrário. Ou será que é possível haver prática revolucionária sem teoria revolucionária? Ou qualquer forma de ação sem um pensamento que a oriente?

“Há teoria, mas a prática é que a orienta”. Ora, pra quê? Se não for para a teoria guiar a prática, então eis aí uma verdadeira divagação burguesa.

 
Ignorar o trânsito entre teoria e prática e postular uma via de mão única é cair em um mecanicismo que combina idealismo tacanho e praticismo ordinário; no que o stalinismo é exemplar.
 

É preciso inventar a figura de um Marx 100% militante para substituir todos os anos que passou fazendo privilegiadas divagações burguesas ao vento. Sem as quais não haveria sequer a vulgata que os sectários sorvem de papinha teórica.

Nosso amigo Frederico Lambertucci explica:

Não podemos esquecer que para estes militantes leitores de cartilha de dez páginas o trabalhador tem sérias deficiências cognitivas, insuperáveis, de tal modo que é necessário vulgarizar o texto o máximo possível para que este seja acessível ao nível no qual eles põem a classe trabalhadora.

Os trabalhadores, por terem essa deficiência cognitiva, são incapazes de se apropriar da riqueza produzida pelo gênero humano, mesmo quando ela está apenas na forma de um texto que não reproduza a divisão sócio-técnica do pensamento e utilize de uma forma mais rebuscada de linguagem“.

Alguém protestou: “É incrível como se criam espantalhos pra depois fazer acusações. Aonde tem dizendo que o ‘stalinismo’ despreza a teoria?”

Ele queria uma fonte primária. Pois bem, comecemos pelos dois primeiros parágrafos do DiaMat de Stalin:

– “O materialismo dialético é a concepção filosófica do Partido marxista-leninista. Chama-se materialismo dialético, porque o seu modo de abordar os fenômenos da natureza, seu método de estudar esses fenômenos e de concebê-los, é dialético, e sua interpretação dos fenômenos da natureza, seu modo de focalizá-los, sua teoria, é materialista.

O materialismo histórico é a aplicação dos princípios do materialismo dialético ao estudo da vida social, aos fenômenos da vida da sociedade, ao estudo desta e de sua história“.

Logo de início já se vê uma linearidade entre “abordagem dos fenômenos da natureza” e “estudo da vida social”, ou, para usar o termo de Stalin, a aplicação de uma teoria da natureza sobre os fenômenos da sociedade.

O que ele reafirma pouco depois, ao dizer:

– “Ora, se o mundo é cognoscível e nossos conhecimentos sobre as leis que regem o desenvolvimento da natureza são conhecimentos verdadeiros, que têm valor de verdades objetivas, isto quer dizer que também a vida social, o desenvolvimento da sociedade são suscetíveis de serem conhecidos; e que os dados que a ciência nos proporciona sobre as leis do desenvolvimento social são dados verídicos, que têm valor de verdades objetivas“.

O que vai na contramão da sentença de Marx: “a anatomia do homem é uma chave para se conhecer a anatomia do macaco”, quer dizer, o entendimento do mais simples se pode adquirir por meio do entendimento do mais complexo. Ao contrário, se o ser social se desenvolveu a partir do ser orgânico e este do inorgânico, não será aplicando teorias da física, da química ou da biologia que nos será facultado compreender a sociedade e a subjetividade humanas, e muito menos nos dará qualquer garantia de objetividade do conhecimento.

Mais à frente, Stalin diz que

– “o enlace entre a ciência e a atividade prática, entre a teoria e a prática, sua unidade, deve ser a estrela polar que guia o Partido do proletariado.

Prossigamos. Se a natureza, a existência, o mundo material são o primário, e a consciência, o pensamento, o secundário, o derivado; se o mundo material constitui a realidade objetiva, que existe independentemente da consciência do homem, e a consciência é a imagem refletida dessa realidade objetiva, daí se deduz que a vida material da sociedade, sua existência, é também o primário, e sua vida espiritual, o secundário, o derivado; que a vida material da sociedade é a realidade objetiva, que existe independentemente da vontade dos homens, e a vida espiritual da sociedade, o reflexo dessa realidade objetiva, o reflexo do ser“.

– “Até agora, nos temos referido unicamente à origem das idéias e teorias sociais e das concepções e instituições políticas, a seu nascimento, ao fato de que a vida espiritual da sociedade é o reflexo das condições de sua vida material. No tocante à importância das idéias e teorias sociais e das concepções e instituições políticas, no tocante ao papel que desempenham na história, o materialismo histórico não apenas não nega, mas, ao contrário, salienta a importância do papel e da significação que lhes correspondem na vida e na história da sociedade“.

Mas como ele entende a unidade entre teoria e prática? Qual a importância da teoria?

– “As idéias e teorias sociais não são porém todas iguais. Há idéias e teorias velhas que já cumpriram sua missão e que servem aos interesses de forças sociais caducas. Seu papel consiste em frear o desenvolvimento da sociedade, sua marcha progressiva. E há idéias e teorias novas, avançadas, que servem aos interesses das forças de vanguarda da sociedade. O papel destas consiste em facilitar o desenvolvimento da sociedade, sua marcha progressiva, sendo sua importância tanto maior quanto maior é a exatidão com que correspondam às exigências do desenvolvimento da vida material da sociedade.

As novas idéias e teorias sociais só surgem depois que o desenvolvimento da vida material da sociedade coloca diante dela novas tarefas. Mas, depois de surgirem, convertem-se em uma força importante que facilita a execução dessas novas tarefas surgidas com o desenvolvimento da vida material da sociedade, facilitando o seu progresso. É aqui, precisamente, onde se evidencia a formidável importância organizadora, mobilizadora e transformadora das novas idéias, das novas teorias e das novas concepções políticas, das novas instituições políticas. Por isso, as novas idéias e teorias sociais surgem a rigor porque são necessárias à sociedade, porque sem seu trabalho organizador, mobilizador o transformador, seria impossível ultimar as tarefas que o desenvolvimento da vida material da sociedade faz surgir, e que já estão em tempo de ser cumpridas. E na base das novas tarefas formuladas pelo desenvolvimento da vida material da sociedade, as novas idéias e teorias sociais surgem e abrem caminho, convertem-se em patrimônio das massas populares, mobilizam e organizam estas contra as forças sociais caducas, facilitando assim a derrocada dessas forças sociais que freiam o desenvolvimento da vida material da sociedade“.

– “A força e a vitalidade do marxismo-leninismo se estribam no fato de se apoiarem numa teoria de vanguarda que reflete fielmente as exigências do desenvolvimento da vida material da sociedade e que coloca a teoria à altura que lhe corresponde e considera seu dever utilizar integralmente sua força de mobilização, de organização e de transformação“.

A princípio, não parece haver nada de errado aí. Mas a linearidade entre natureza e sociedade reaparece entre prática e teoria. Teorias que não acompanham a “marcha progressiva” da prática caducam, e novas teorias surgem para “refletir” fielmente a prática, a serviço das “forças de vanguarda”.

Stalin imagina uma teoria que reproduz “com exatidão” a prática, de acordo com as exigências desta. É assim que, de acordo com Lukács, a teoria se torna “esquematismo escolástico-dogmático no plano formal e praticista no plano do conteúdo”, donde sua relação com a prática se mostra linear ou “causal”.

Em consequência disso, Lukács diagnostica que

– “Só com Stalin é que passou a vigorar o mau costume teórico de “deduzir” toda decisão estratégica ou tática da doutrina marxista-leninista, como se fosse uma consequência logicamente necessária. Com isso, por um lado, os princípios eram mecanicamente adaptados à necessidade do momento e, assim, deformados; por outro, apagou-se a importante diferença entre leis gerais e decisões concretas, válidas apenas uma vez, deixando lugar para um dogmatismo voluntarista-praticista“.

Em suma, a teoria se torna utensílio para as conveniências de justificação do oportunismo prático. O próprio caráter tutorial dos textos de Stalin demonstra a concepção da teoria como instrumental de “aplicação” (e este é um termo profundamente revelador) na prática. E como confirmação da análise, nada melhor que ir para além do que se passava na cabeça de Stalin e avaliar a sua própria prática – o que fica pra depois, se for o caso.

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stalin 2
não está aqui quem criticou