Dialética: motor das “etapas da história” no marxismo vulgar

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O capitalismo é o último e mais avançado tipo de sociabilidade reproduzida por homens que “o fazem, mas não o sabem”, donde a aparência de uma forma social que emergiu naturalmente, tal como as anteriores, semeando nas imaginações adubadas com esterco religioso a idéia de um mecanismo ou um deus que dirige a história do alto de sua dimensão etérea e atemporal.

O marxismo vulgar reproduz tal idéia com um esquematismo que chama de “dialética”, sobre o qual elabora o chamado “etapismo”, decreto que certifica a chegada do comunismo (“próxima etapa da história”) como um evento tão absolutamente certo e necessário quanto o retorno do cara que fazia vinho com a água da cumbuca.

Imaginam os etapistas que o comunismo, a economia finalmente tornada atividade social e racional, virá pela mesma atividade de homens que “o fazem, mas não o sabem” que instaurou a degradação universal de nossos dias.

É “dialético”: do lodo nasce o lótus, e da ignorância de tais sub-marxistas nascerá o “novo homem”, tão novo quanto um australopiteco, verdadeira possibilidade de realização natural de um pós-capitalismo.

Daí que o diálogo com estes praticistas é tão producente quanto o que se pode ter com crentes, coxinhas etc. A Bíblia, Ovalo de Carlhavo e Stálin pensam por eles; o que lhes cabe é fazer panfletagem de santinho em meio ao populacho inocente.

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Marxismo para os Homers Simpson

A importância do Materialismo para a práxis de esquerda

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Não é raro o tipo que se identificava – ou ainda se identifica – com as bandeiras e valores da esquerda, incluindo por vezes o ateísmo, e que de repente se torna um ativista reativo reaça ou liberalóide e crente de uma das mitologias dominantes ou outra qualquer disponível no mercado das auto-ilusões.

Isso se explica pelo fato do sujeito nunca haver abandonado o patamar mais natural e pueril que há em termos de fundamentação do pensamento, o idealismo ontológico. Por falta de noção ontológica materialista (ou de qualquer uma), é inevitável que seus ímpetos e anseios esquerdistas se enredem em um tanto de contradições e apresentem toda sorte de inconsistências com outras tantas idéias, crenças e atitudes mal costuradas, configurando um voluntarismo auto-sustentado que tem tudo pra ruir sobre si mesmo e alimentar um ânimo reativo.

Por isso me parece que, mais importante que começar por estudar os meandros da crítica à economia política de Marx, os indivíduos que simpatizam e adotam a ética de esquerda deviam iniciar a constituição de suas consciências teóricas estudando o materialismo; sem o qual não apenas o marxismo, mas todo o pensamento filosófico e científico se tornam incompreensíveis, fatalmente deformados em alguma sorte de ecletismo, quando não descambam de vez no relativismo, culturalismo e subjetivismo, como acontece no caso do pensamento religioso – donde também o moralismo e outras tantas formas de práticas exclusivistas, incluindo o politicismo e demais oportunismos, acabam por se imiscuir no interior de tamanha monstruosidade conceitual.

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O materialismo – me refiro sempre, não custa lembrar, à posição ontológica delineada desde a filosofia grega antiga e que culmina em Marx – é ponto de partida essencial, reitero, para não apenas a compreensão do pensamento marxiano, mas de todas as formas do pensamento humano (e também o desenvolvimento histórico de cada uma delas) – senso comum, mitologia, religião, filosofia, ciência, ideologia, direito etc. – e ainda, acima de tudo, crucial para guiarmos nossa própria prática com a maior acuidade e discernimento que nos for possível desenvolver por nós mesmos.

Donde ser imprescindível ter clareza a respeito do que é materialismo, pois se trata de alicerce do saber de rigor, fermento da lucidez e ferramenta de amolar a inteligência; sem o qual a mente permanece naturalmente presa ao idealismo, areia movediça abstrata e de cunho metafísico que irá, por menos que sequer desconfiemos disso (e por que o suspeitaríamos, se estamos num grau de anti-reflexão?), nos servir de sabotagem para nosso próprio pensamento. Naturalmente, eu disse, pois a primeira forma da elaboração de idéias pela consciência é a que toma a si mesma como parâmetro daquilo que julga ser uma apreensão da realidade (podemos chamar isso de subjetivismo, egoísmo cognitivo, antropomorfismo etc). O fato é que o idealismo se verifica tanto na infância da humanidade quanto na dos indivíduos, e superar sua rudeza nativa é passo necessário para educarmos a consciência na razão (faculdade que nada tem de natural, como supunha Aristóteles, nem é inata, como quis Descartes e cia.) e para a ação responsável e efetiva.

A própria lida prática cotidiana com o mundo já demanda essa superação e inicia nossa educação no materialismo, mas ela não fornece mais que uma noção, suficiente para a imediaticidade de tal prática, donde se tornar suscetível a se confundir com os entulhos idealistas que continuam por todos os lados a poluir nossa consciência – os quais só o estudo pode remover, permitindo um assentamento ontológico sólido.

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Para começarmos a compreender o nosso assunto, vejamos como Feuerbach estabelece sua crítica a Hegel – a partir da qual, e em conjunto com o desafio de discutir os “interesses materiais” (Gazeta Renana: “debates sobre os furtos de lenha”), Marx levou o materialismo à maturidade.

Em suas Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia e nos Princípios da Filosofia do Futuro, Feuerbach denuncia a identificação hegeliana entre ser e pensar, pela qual Hegel resolve o dualismo no interior do próprio pensar, tornando o ser predicado do pensamento; frente a isso, Feuerbach promove uma virada ontológica:

– “Em Hegel, o pensamento é o ser; – o pensamento é o sujeito, o ser é o predicado. […] A verdadeira relação entre pensamento e ser é apenas esta: o ser é o sujeito; o pensamento, o predicado. O pensamento provém do ser, mas não o ser [provém] do pensamento. O ser existe a partir de si e por si – o ser só é dado pelo ser. O ser tem o seu fundamento em si mesmo, porque só o ser é sentido, razão, necessidade, verdade, numa palavra, tudo em todas as coisas. […] um ser que não se distingue do pensar, um ser que é apenas um predicado ou uma determinação da razão, é unicamente um ser pensado e abstrato, na verdade, não é ser algum. […] O ser da lógica hegeliana é o ser da antiga metafísica, que se enuncia de todas as coisas sem diferença porque, segundo ela, todos têm em comum o fato de ser. Mas este ser indiferenciado é um pensamento abstrato, um pensamento sem realidade. O ser é tão diferenciado como as coisas que existem. […] Característica da anterior filosofia abstrata é a questão: como é que outros seres, substâncias autônomas e distintas podem agir umas sobre as outras […]? Mas tal questão era para ela insolúvel, porque abstraía da sensibilidade; porque as substâncias, que deveriam agir umas sobre as outras, eram seres abstratos, puros seres do entendimento. O mistério da ação recíproca resolve-se apenas na sensibilidade. Só os seres sensíveis agem uns sobre os outros. […] O entendimento abstrato, porém, isola este ser-para-si como substância, átomo, Eu, Deus – por conseguinte, só pode conectar arbitrariamente o ser para outro. […] Só a determinidade constitui a distinção, a fronteira entre o ser e o nada. Se eu deixo de lado o que é, que pode ser ainda este simples é?” (Teses Provisórias).

Feuerbach, a despeito da lucidez com que apresenta sua crítica à especulação e sua demanda pelo ser sensível, infelizmente é inconseqüente para com elas, não apreendendo todos os desdobramentos possíveis e necessários do reposicionamento ontológico que instaura, e mantendo-se preso à antropologia, pela qual voltará a cair na especulação e na ignorância acerca do ser social.

Ao se voltar contra a especulação par excellence – a filosofia hegeliana, na qual o objeto investigado é subsumido às categorias abstratas da lógica, não captando suas propriedades, mas tão somente o diluindo na generalidade – Marx apresenta, pela primeira vez, o sentido próprio do que chama de “crítica”: compreensão da gênese do objeto investigado, desvelamento de sua razão de ser. Assim, Marx postula energicamente: as categorias devem apreender a lógica específica do objeto específico, pois “uma explicação que não dá a differentia specifica não é uma explicação” (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel).

Será a partir da crítica à economia política, primeiramente exposta nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, e contra a desontologização do ser no pensar operada por Hegel que Marx fará claras indicações a respeito das determinações principais do ser social e de seu processo de autoconstituição em meio (e por sobre) a natureza, estabelecendo os lineamentos mais gerais de uma nova posição ontológica. Primeiro, contra a figuração abstrata da consciência ou de uma subjetividade contraposta à objetividade, Marx remete a discussão ao homem real:

– “Quando o homem real, corpóreo, de pé sobre a terra firme e aspirando e expirando todas as forças naturais, assenta suas forças essenciais reais e objetivas como objetos estranhos mediante sua alienação, o ato de assentar não é o sujeito; é a subjetividade de forças essenciais objetivas, cuja ação, por isso, deve ser também objetiva” (Manuscritos Econômico-Filosóficos).

A subjetividade é um atributo da objetividade (enquanto complexo de “forças essenciais objetivas”, ou seja, as faculdades corpóreas e espirituais dos indivíduos humanos); só por isso a ação do sujeito pode criar objetos, ou antes, só por isso a subjetividade pode interagir com a objetividade. Marx irá tratar esta categoria em termos ainda mais amplos:

– “O ser objetivo atua objetivamente e não atuaria objetivamente se a objetividade não estivesse na determinação de seu ser. O ser objetivo cria e assenta apenas objetos, porque ele próprio é posto por objetos, porque é originalmente natureza. O ato de pôr não cai, pois, de sua ‘atividade pura’ em uma criação do objeto, senão que seu produto objetivo apenas confirma sua atividade objetiva, sua atividade como atividade de um ser natural e objetivo” (MEF).

É assim que Marx, não apenas contra Hegel mas toda a filosofia anterior, afirma a relação homem-natureza em primeiro lugar pela objetividade, atributo geral, comum a todo ser. Enquanto que a subjetividade, na realidade, não é anterior à objetividade (deus, lógos, Idéia etc.) e nem flutua no ar, mas é predicado de certas forças objetivas, forças estas do homem enquanto ser objetivo. O sujeito põe, cria, assenta novos objetos, novas exterioridades a partir de sua ação objetiva – e não de uma “atividade pura”, meramente espiritual, uma ação a rolar tão somente no interior da consciência –; produção objetiva que confirma seu ser objetivo. Subjetividade e objetividade não são categorias isoladas, mas aspectos do ser humano em íntima relação transitiva, o que se faz explícito na atividade prática em que o sujeito interioriza o objeto sob forma de pensamento e exterioriza sua subjetividade na criação de novos objetos.

A objetividade se confunde inicialmente com a naturalidade; mas, ao entrar em relação com a subjetividade, se tornará elemento de uma emergência sempre inédita e histórica, uma nova objetividade em relação à natural: a sociedade.

O ponto de partida está no fato do ser humano surgir como ser da natureza. Seu corpo, subjetividade e sociabilidade são imediatamente (i.é., a princípio) naturais, bem como sua objetividade:

– “O homem é imediatamente ser natural. Como ser natural, e como ser natural vivo, está, em parte, dotado de forças naturais, de forças vitais, é um ser natural ativo; estas forças existem nele como disposição e capacidades, como instintos; em parte, como ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, é um ser que padece, condicionado e limitado, tal qual o animal e a planta; isto é, os objetos de seus instintos existem exteriormente, como objetos independentes dele; entretanto, esses objetos são objetos de seu carecimento, objetos essenciais, imprescindíveis para a efetuação e confirmação de suas forças essenciais” (MEF).

Marx descreve aqui as categorias mais fundamentais do ser orgânico, mostrando que o homem, enquanto ser vivo, não é meramente espírito, razão, consciência, em suma, subjetividade; além disso, esta se manifesta primeiramente como disposições, capacidades, instintos, carências. A subjetividade carece de objetos exteriores, o que confirma sua própria objetividade.

– “Que o homem seja um ser corpóreo, dotado de forças naturais, vivo, efetivo, sensível, objetivo, significa que tem como objeto de seu ser, de sua exteriorização de vida, objetos efetivos, sensíveis, ou que só em objetos reais, sensíveis, pode exteriorizar sua vida. Ser objetivo, natural, sensível e ao mesmo tempo ter fora de si objeto, natureza, sentido, ou inclusive ser objeto, natureza e sentido para um terceiro se equivalem” (MEF).

Contra Hegel, Marx afirma a objetividade como a determinação primeira do homem. Enquanto tal, carece e sofre objetivamente, inclusive como objeto para um outro. Na seqüência do argumento, Marx dá um exemplo de como o caráter objetivo do homem se manifesta na sua carência de objetos exteriores:

– “A fome é um carecimento natural; precisa, pois, uma natureza fora de si, um objeto fora de si, para satisfazer-se, para acalmar-se. A fome é a necessidade confessa que meu corpo tem de um objeto que está fora dele e é indispensável para sua integração e para a sua exteriorização essencial”;

assim como, na natureza,

– “O sol é objeto da planta, um objeto indispensável e assegurador de sua exteriorização da força vivificadora do sol, de sua força essencial e objetiva” (MEF).

Esta passagem é toda uma claríssima e contundente contraposição ontológica, materialista, ao que o entendimento filosófico, cujo representante em tela é Hegel, concebeu a respeito. O ser, segundo Marx, é, antes de tudo, objetividade; entenda-se por isto que o ser é uma malha de relações com outros seres, relações objetivas, sensíveis, efetivas, imediatas, externas – em suma, a objetividade remete ao caráter relacional entre exterioridades. Nessas relações o homem não só padece, mas também é ativo, e nelas exterioriza ou expressa seu ser e não só seu saber (como em Hegel).

Ser é ser objetivo, é ser em relação com outros seres, distintos e efetivos; nestes termos gerais, Marx incisará:

– “Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é um ser natural, não faz parte da essência da natureza. Um ser que não tem nenhum objeto fora de si não é um ser objetivo. Um ser que não é, por sua vez, objeto para um terceiro ser não tem nenhum ser como objeto seu, isto é, não se comporta objetivamente, seu ser não é objetivo. Um ser não objetivo é um não-ser” (MEF).

A objetividade é uma categoria presente em qualquer ser, incluindo o homem, e remete imediatamente a outras categorias fundamentais, como a coexistência, a efetividade, a sensibilidade, a passibilidade (ou padecência) e a concreção. Ou seja, a relação objetiva entre os seres é uma relação de reciprocidade, uma interação objetiva. Um ser se determina pelos seres que são seus objetos e vice-versa; o homem é um ser natural na medida em que tem a natureza como seu objeto (e, em seu processo histórico de apropriação da natureza, a tornará mais e mais humanizada). Caso contrário, como na metafísica e na teologia:

– “Suponha-se um ser que nem é ele próprio objeto nem tem um objeto. Tal ser seria, em primeiro lugar, o único ser, não existiria nenhum ser fora dele, existiria solitário e sozinho. Pois, tão logo haja objetos fora de mim, tão logo não esteja só, sou um outro, uma outra efetividade diferente do objeto fora de mim. Portanto, para o terceiro objeto, eu sou uma outra efetividade distinta dele, isto é, sou seu objeto. Um ser que não é objeto de outro ser supõe, pois, que não existe nenhum ser objetivo . Tão logo eu tenho um objeto, este objeto me tem a mim como objeto. Mas um ser não objetivo é um ser não efetivo, não sensível, somente pensado, isto é, somente imaginado, um ser da abstração. Ser sensível, isto é, ser efetivo, é ser objeto dos sentidos, é ser objeto sensível, e, portanto ter objetos sensíveis fora de si, ter objetos de sua sensibilidade. Ser sensível é padecer” (MEF).

O ser não é a categoria vazia e mais geral da metafísica, o produto mais abstrato do pensamento, a idéia que, como bem viu Feuerbach, “se enuncia de todas as coisas sem diferença”, mas sim uma entificação concreta e singular (e, portanto, como Marx reconhece, entificação essencialmente histórica). Partir da idéia de ser é cair imediatamente na mistificação, pois este “ser” – ou melhor, a sua mera idéia, concebida pelos filósofos como “atributo” dos entes (eis que a existência se torna um predicado da substância e não a substância mesma! O nome disso é: metafísica, a ontologia tornada um cadáver idealista) -, é abstração, ou seja, exatamente o contrário do que se deve pretender atingir. A objetividade é, como Feuerbach também percebeu, a única forma de explicar as relações que os entes singulares mantêm na realidade; é por isso que abstrair a objetividade levou a filosofia a cair em vários pseudoproblemas, uma vez que os entes perdem sua constituição ontológica e só podem ser pensados como certa sorte de epifenômenos do “ser único”. Ora, um “ser não-objetivo” só pode ser uma imagem mental ou um nome; o idealismo se embriaga tanto com a imaginação que se esquece de que seu “ser” é apenas uma idéia.

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Muitas outras categorias se desdobram na análise marxiana, como a historicidade, sobre a qual apenas aludimos. E daqui decorre todo um entendimento crítico em relação à sociabilidade, à economia, à política, à filosofia, à arte, à ciência etc. Não podemos, no entanto, fazer deste artigo um trabalho exaustivo e seguir em frente. Para nossos propósitos, basta.

(Alguns de nossos textos aqui podem ampliar esta noção. Confira: Marx: o materialismo contra a dialética“Base materialista para a historiografia”: para muito além das abstrações do marxismo vulgarMarxismo de cátedra: deturpar para “atualizar” Marx“O comunismo não funciona”? – ou: As vias irracionalistas do discurso de direitaOntologia da ciência e da arte: complexos da atividade humanaAteísmo vs. Agnosticismo etc.)

Combater a ignorância em relação ao materialismo é uma tarefa atenta à sentença de Lukács: por mais aditivado que seja o combustível de uma ética de esquerda, sem a base materialista os indivíduos pensarão o mundo e a prática por meio de uma epistemologia de direita, o que só pode servir de guia para o lodaçal da confusão e do pessimismo imobilista e anti-humanista. Exemplos não faltam para demonstrar isso, não é mesmo?

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A título de conclusão, há que acrescentar uma observação importante aqui. Eu havia falado do ateísmo como bandeira e valor da esquerda, e ainda que o materialismo culmina em Marx. Entretanto, Marx não faz do ateísmo um estandarte de sua militância. O que ele afirma é que, após a crítica dos materialistas ingleses, franceses e alemães à religião, se tornou claro a alguns deles – em especial Helvétius -, que era preciso atentar ao mundo humano e não mais criticar o Reino dos Céus. Marx diz:

– “A crítica da religião desengana o homem a fim de que ele pense, aja, configure a sua realidade como um homem desenganado, que chegou à razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo, em torno de seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não gira em torno de si mesmo.

Portanto, a tarefa da história, depois de desaparecido o além da verdade, é estabelecer a verdade do aquém. A tarefa imediata da filosofia que está a serviço da história é, depois de desmascarada a forma sagrada da autoalienação humana, desmascarar a autoalienação nas suas formas não sagradas. A crítica do céu transforma-se, assim, na crítica da terra” (Intro. à Crítica do Direito).

E sobre Helvétius:

– “Se o homem forma todos seus conhecimentos, suas sensações etc. do mundo sensível e da experiência dentro desse mundo, o que importa, portanto, é organizar o mundo empírico de tal modo que o homem faça aí a experiência, e assimile aí o hábito daquilo que é humano de verdade, que se experimente a si mesmo enquanto homem. Se o interesse bem-entendido é o princípio de toda moral, o que importa é que o interesse privado do homem coincida com o interesse humano. Se o homem goza de liberdade em sentido materialista, quer dizer, se é livre não pela força negativa de poder evitar isso e aquilo, mas pelo poder positivo de fazer valer sua verdadeira individualidade, os crimes não deverão ser castigados no indivíduo, mas [devem-se] sim destruir as raízes anti-sociais do crime e dar a todos a margem social necessária para exteriorizar de um modo essencial sua vida. Se o homem é formado pelas circunstâncias, será necessário formar as circunstâncias humanamente. Se o homem é social por natureza, desenvolverá sua verdadeira natureza no seio da sociedade e somente ali, razão pela qual devemos medir o poder de sua natureza não através do poder do indivíduo concreto, mas sim através do poder da sociedade” (Sagrada Família).

Marx, ao contrário do que se afirma, não faz a crítica da religião, mas a considera já feita; sua importância foi trazer, “em gérmen, a crítica do vale de lágrimas”, ou seja, sua capacidade de “[arrancar] as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem suporte grilhões desprovidos de fantasias ou consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche”; isso significa que o que realmente importa é que “a crítica do céu [transforme-se] na crítica da terra, a crítica da religião na crítica do direito, a crítica da teologia na crítica da política” (Intro. à Crítica do Direito) e a crítica da especulação e do idealismo na crítica da economia política e da sociabilidade capitalista.

Por isso, é imperativo se empenhar em chegar a Marx no estudo do materialismo. É ele o autor que desenvolve a ontologia a um estágio que abarca toda a realidade – natureza e sociedade -, deixando para trás o reducionismo, o mecanicismo, a grosseria e a vulgaridade do materialismo naturalista, que chega, ao máximo e na melhor das hipóteses, até Darwin e nele estaciona; é o que constitui a legião de direita formada por agnósticos, céticos e racionalistas que militam, como facção majoritária, nas hostes do ateísmo atual. Trata-se de um materialismo que não faz a “crítica do vale de lágrimas” e se contenta em blasfemar contra mitologias, pois o gérmen não se desenvolveu e se tornou senil em sua própria puerilidade.

É verdade que, no caso histórico específico de países como o Brasil, a crítica da religião se justifica numa crítica política. Mas raramente esta crítica política se amplia numa crítica da própria política, e acaba se mostrando apenas como mais um cântico – o de sua própria impotência.

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Pois bem. Eu pretendia elaborar uma bibliografia básica sobre o materialismo, e de repente me lembrei de um trabalho que fiz a respeito há uns dez anos atrás e que talvez mereça uma boa revisão, mas que no geral ainda é de algum proveito. Obviamente, está longe de ser exaustivo, talvez mesmo para servir de ponto de partida; por outro lado, foi feito por sobre alguns dos mais importantes autores no assunto – aqueles que contribuíram diretamente ou estabeleceram definitivamente seu patamar de maturidade -, numa linguagem acessível e não muitas páginas.

Segue no link abaixo.

Natureza, sociedade e atividade sensível na formação do pensamento marxiano

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