A gravidade é só uma teoria

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Ceticismo terraplanista não é dúvida, mas o contrário: é crença em lorota anti-científica.

É como achar que o dogma faz crítica da ciência. “A gravidade é só uma teoria”, afirma a opinião que envergonha a doxa e o sofisma.

Um sujeito construiu um foguete para elevá-lo aos céus e, assim, comprovar aos próprios olhos a verdade da “teoria” que algum astrólogo meteu-lhe na cabeça: “se a Terra fosse redonda e não plana, não seria um planeta e sim uma redondeta”.

Com base em quê ele calculou o que seria necessário fazer para o foguete subir?

Pois bem, subiu. E ainda que dissesse depois “é fácil enganar os olhos”, não poderia dizer o mesmo dos ossos. Para estes, tal como é para qualquer pessoa mentalmente sadia, se tornou óbvio não haver nenhuma razão para suspeitar e afrontar a veracidade da teoria, da única teoria em pauta aqui, perfeitamente correta desde que Isaac Newton a elaborou (graças à qual sabemos que a Terra é necessariamente redonda – ainda que não seja geometricamente perfeita, como uma bola).

1,5 km de queda livre há de tornar tal certeza mais clara que o Sol.

E tem mais uma evidência: a de que aquelas suspeitas e afrontas em nada atingem a ciência, apenas nos dizem algo importante acerca de quem as levanta. Algo… assim: deixa esse animal aí bostejando pela língua e segue teu rumo!

Apesar de tudo, a história termina em justo, e portanto feliz, reconhecimento – deveras tardio, é verdade, mas mesmo assim cientificamente valoroso, bem como o é aprender com os próprios erros. Neste caso, foi a conquista de um saber autêntico, certa e devidamente temperado com o mais puro pavor, durante o breve instante em que nosso (anti)cientista e inventor aeronáutico descobre o significado da expressão “por via das dúvidas”.

O ceticismo é quem sugere: acima de tudo o mais, tenha um pouquinho de dúvidas acerca de suas próprias crenças; jamais aceite que um astrólogo possa questionar ou desqualificar qualquer coisa, menos ainda e até mesmo o artelho mindinho de Isaac Newton; por fim, e por via das dúvidas, seja precavido… e leve um paraquedas.

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PS. Orvalho de Cavalo já está em casa.

Espero que esteja em sua mesa, ou numa poltrona, apreciando um bom maço de cigarros.

Mas, na verdade – e é preciso dizê-la -, lugar de astrólogo é no céu.

Então, por mim Chocalho de Carajo deveria estar a mais ou menos 1,5 km do chão, donde poderia aproveitar e verificar se a Terra de fato é plana. E já que Isaac Newton é um idiota… desnecessário um paraquedas.

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A imagem pode conter: possível texto que diz "Gravidade apenas uma teoria"

Fernando Pessoa: ultimato à razão

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Assistir Maria Bethânia recitando Ultimatum de “Álvaro de Campos” é de dar nó nas tripas.

Porque não é exatamente um ato majestoso de emprestar sua bela voz a um poeta genial (se bem que não é nada que causa espanto em quem manja o qualé da turma da MPB do dendê).

Pra começo de conversa, essa não é uma poesia genial do pluri-egocêntrico Fernando Pessoa.

Seu ultimato é nitidamente nietzschista. Quase uma caricatura; e seria, se o original fosse mais que isso.

Nietzsche é aquele que aplaudiu o massacre covarde da Comuna de Paris pelas tropas prussianas a pedido de Thiers, que havia acabado de perder a guerra para a mesma Prússia e ainda coroou Guilherme I como Imperador no Palácio de Versalhes. Um punhado de fatos que lançou a outrora revolucionária França na indelével latrina das grandes e irremediáveis ignomínias da história.

Pior que a burguesia francesa se oferecendo de capacho ao seu vencedor e solicitar sua ajuda para chacinar aqueles que lutaram ao seu lado, só mesmo um saxão nanico exaltando as “virtudes heróicas” dos que trucidaram os “bárbaros socialistas franceses”. Um elogio não muito original vindo de um acadêmico do lado-de-lá do Reno, que cultiva taras acerca da própria impotência e realiza sua Vontade alemã ao se oferecer como capacho do capacho.

E o que dizer de seu pimpolho lusitano, que brada contra “vós [socialistas] que confundis o humano com o popular”, para terminar seu manifesto afirmando: “Eu da raça dos navegadores, /…/ eu da raça dos descobridores, /…/ proclamo isso bem alto, saudando abstratamente o infinito”?

(“Saudando abstratamente o infinito”: parece bonito, parece profundo, mas é apenas raso, idiota e brega. Porque não basta saudar o infinito; é preciso fazê-lo de forma abstrata, ou seja, sem saudá-lo de verdade, até porque o infinito é coisa nenhuma. O que se adequa perfeitamente ao que Fernando Pessoa havia acabado de usar para falar de si mesmo: a expressão pomposinha “raça dos descobridores” – com o que ele se vangloria de ser um… português. Ora pois, não é qualquer um que tem pedigree e bigodinho de marinheiro.)

As declarações de desprezo pelo socialismo não provém de nenhuma particularidade pessoal de “Álvaro de Campos”. Poucos anos depois, Fernando Pessoa itself se permitiu demonstrar como e por que um banqueiro é um homem que luta pela emancipação da humanidade ao angariar seus lucros privados, rejeitando as “falsas convenções da sociedade” e obedecendo apenas ao egoísmo “natural” da “espécie humana” (cf.: Fernando Pessoa e o “verdadeiro anarquismo” a serviço da burguesia).

É engraçado notar como o irracionalismo segue uma rota rigorosamente coerente, rumo ao profundo âmago do umbigo filosofante. Tal como seu muso inspirador de fanfarronices, Fernando Persona finalmente se imagina “pura dinamite”, demiurgo do “novo”, abraçando o Atlântico. É o revolucionário de um mundo particular e totalmente privê.

Nada disso é casual. Quando os ideólogos da burguesia, a partir dos eventos históricos que varreram a Europa em 1848, admitiram sua derrota ideológica no campo da razão, lhes restou combater o socialismo com a elegância da abstração, a saudação vazia ao nonsense, o pronunciamento orgulhoso do mundo como mero absurdo e, enfim, a adoração religiosa do magnânimo “Eu”, que rompe todos os grilhões existentes na realidade por meio de bazófias saídas do porão da fantasia, fingindo iconoclastia e esbanjando adulação aos seus “heróis da humanidade”, à “raça” dos que têm pedigree no bolso.

“Álvaro de Campos” é apenas mais uma pessoa dentre tais ideólogos. Não como filósofo, porque é mais fácil vender irracionalismo sob forma de poesia que de filosofia – já que não pretende dizer nenhuma verdade ao dizer que a verdade não existe; donde a poesia ser ruim pretendendo ser poesia filosófica, enquanto a filosofia já foi usada até mesmo pelos cristãos… ou por Nietzsche, “O Anticristo” da filosofia poética que escandalizou o próprio Satã.

E no Brasil, last and least, coube e cabe à música popular (tanto a baiana quanto as congêneres) declamar a crítica à razão com a aura da rebeldia própria da academia. Arte que faz “pensar”. Quem viu Bethânia proferi-la não pode desvê-la, e talvez nem deva tentar.

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Nietzsche
filosofia do “para mim”

“O comunismo não funciona”?

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– “Socialismo, comunismo, isso não funciona, só gera pobreza”.

Você já ouviu esse mantra. E sabe que reza alguma visa esclarecer, mas sim aliciar. Pra quê apelar para o cérebro, se o intestino produz resultados rápidos e pungentes?

Quando alguém acredita que o comunismo “não funciona”, é porque tem uma noção bem fantasiosa do que seja a sociedade: como se fosse uma coisa, ou melhor, uma outra coisa que os indivíduos associados – uma sociedade existente independente dos indivíduos, um “sistema” pairando sobre eles. Durkheim merecia ver isso!

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É preciso enfatizar isso: comunismo e capitalismo não são coisas, não são “modelos”, “sistemas”, esquemas, planejamentos de engenharia social ou anti-social; são, isso sim, formas históricas e distintas de associação entre indivíduos. Herdados e posteriormente reproduzidos por eles, são modos de organizarem entre si suas relações com a natureza, no intuito de, antes de tudo o mais, sobreviverem; ou seja, o trabalho, a divisão do trabalho, a divisão dos produtos do trabalho, a divisão das cacetadas nas cabeças etc.

Comunismo e capitalismo não são máquinas que deveriam funcionar e que devem ser rejeitados caso contrário, pois não são algo distinto dos indivíduos, um algo que “tem de funcionar”.

Também não estamos falando de formas de Estado, de regime político, governos etc. – aliás, assuntos que não devem ser pensados em termos funcionais, se é que funcionariam de qualquer jeito. Quer dizer, funcionam: especialmente quando parece que não. Alguma surpresa?

Estamos falando de pessoas vivendo suas vidas e o tempo todo em relação umas com as outras. Será que uma pessoa deve ser avaliada na medida em que “funciona”?

Trata-se de formas de sociabilidade, de um fazer-se cotidiano e entre todos os demais (Marx fala da vida prática de homens vivos e ativos); daí que a avaliação de uma forma social só pode ser realizada com seriedade se se levar em conta a sua história, suas entificações geográficas, suas relações econômicas e políticas internas e com as demais sociedades etc.

Ou seja: não nos preocupemos, por exemplo, em virar uma nova Venezuela ou Cuba. Isso só seria possível apagando tudo que faz o Brasil, a Venezuela e Cuba serem exatamente isso – Brasil, Venezuela e Cuba. Nem um jogador de WAR pensa de maneira tão… tabular.

Se as tentativas (supondo que realmente as foram) dos países ditos socialistas do século XX em transformar a sociedade naufragaram, não é porque os planos de Marx estavam errados. Primeiro, porque Marx não tinha tais planos; e depois, porque esses países existiam na realidade e não na fantasia ou num projeto matematicamente calculado.

Aqui o “comunismo” deve deixar de ser uma abstração e o assunto deve passar a ser “o que deu errado com a URSS?”. O problema na verdade não é porque a URSS desmoronou após 70 anos e status de superpotência, mas sim “como durou tanto?”. E aí devemos entender o que foi que transformou a república revolucionária dos sovietes em um comitê peçonhento de burocratas – que elevaram o Estado e as razões de Estado acima da razão e da revolução, tal como acontece sob qualquer outro Estado, e fizeram da URSS o maior inimigo da luta dos trabalhadores, onde quer que estivessem avançando na derrubada da sociedade e do Estado burgueses. Mas isso é assunto para outra ocasião.


Vale a pena uma breve nota sob o cenário em que a falência da empreitada comunista no mundo dos negócios é cantada em oratório.

A direita faz uma campanha incansável para reverter, a ponto de transubstanciar à completa inversão, a imagem que a população tem dela. E isso com a inteligência de um plâncton e a honestidade de uma hiena! Deu certo: sabem que consciência mítica se cultiva com mantras e Goebbels ad nauseam.

E que ótimo que ela voltou ao poder! Pois parece que uns e outros por aí se esqueceram o que é a democracia, a política, o que é e o que quer o poder político: o jogo da burguesia em seu próprio estádio.

Claro que a mídia vai continuar dando, ou vendendo, aquela forcinha; e as redes sociais, como boas chupadoras “críticas” da cloaca da imprensa que são, vão seguir cotidianamente regurgitando esses despautérios para nos fazer acreditar que a esquerda é que merece ser desqualificada das formas mais aviltantes.

Será mesmo preciso explicar – toda hora – que o fato de Lula e Dilma não serem traficantes de cocaína, nióbio e órgãos humanos não significa que o PT é de esquerda? Se você chegar a tocar no assunto em questão – a “função comunista” da sociedade -, já pode comemorar uma vitória.

Ou então, é preciso compreender porque o discurso colou. O PT é a esquerda brasileira, muito parecida com as esquerdas alhures, e é preciso derrotá-la em um processo que acabe com sua razão de existir, a propriedade privada e seus mordomos e soldados.

Mas, se não for possível furar a bolha mitológica, lembre-se: não se discute num fórum visando apenas o interlocutor. Aliás, por ele deveríamos já estar no bar tomando um suco de cevada.

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Cf. também os textos O que foi que deu errado?, O comunismo hobbesiano da direita e Inveja esquerdista contra os bem-sucedidos?

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engenharia social

“Eu”: a ilusão de uma singularidade absoluta

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eu-tenho-um-like-e-nao-te-dou

 
A questão ou conjunto de questões que nos leva ao misticismo, à religião, à feira hippie, ao veganismo, ao liberalismo e ao psiquiatra (a ordem dos fatores não altera o autoflagelo) não é a constatação assombrada de cada um de nós existir – nesse exato instante, irrepetível na história do universo -, saber que vai morrer, saber que possui ou é um Eu totalmente próprio, mas sim:
 
Por que eu sou esse eu aqui?
 
Centrado aqui, surgido de repente do nada e tendo a sensação de que sou um eu diferente do eu dos outros (pois só este eu sou eu)?
 
Por que aqui, nesse tempo? Por que não sou outra pessoa?
 
Alguém outro que vivesse tudo que eu vivi e reagisse da mesma forma que fiz: seria eu?
 
Fosse outro o espermatozóide… fosse outro o pai, apesar de ninguém saber – eu seria ainda esse eu aqui?
 
Tivesse vivido e feito outras coisas: eu não continuaria me identificando como eu, ainda que minha pessoa fosse melhor em umas, pior em outras coisas, poucas ou muitas?
 
Mas é óbvio que isso parece a nós um evento extraordinário no mundo – donde, aliás, deus “necessariamente” ter de existir; pois, se há alguma coisa que dá a deus uma razão de ser, essa coisa sou eu, além do fato de meu eu ter surgido do nada pra cá e nesse tempo. O que não pode jamais ser algo infundado, mas tem um propósito, ainda que eu seja um babaca.
 
(Deus me dá uma mãozinha e eu garanto sua existência. Descartes já havia cantado essa pedra e MC Escher desenhou depois.)
 
Fechando o parêntese, o fato é que colocamos tais questões partindo de nós mesmos, isto é, de tudo aquilo que constitui nossa subjetividade; portanto, de nossa memória, de nossos afetos etc.
 
É preciso ter cuidado ao cutucar, com perguntas assombradas, o próprio afeto (se bem que cuidado nenhum preenche a falta de juízo), essa força biológica e culturalmente determinada (especialmente pela emergência da individualidade na era moderna) e que é um verdadeiro barco de Caronte esperando para nos levar pro fundo da consciência natural, rústica, infantil, irracional, sentimental e apaixonada da bolha mitológica, com a devida “tempestade e ímpeto” que lhe cabe.
 
(Quando essa merda vira massa de manobra na política, a tendência é afundar toda a população na barbárie com orgulho. Fé em deus! Deixa a vida me levar, etc. Jamais antes de 1848 e das guerras do século XX poderia haver algo como o existencialismo, a filosofia do egoísmo e do abandono.)
 
Daí a aparência de que há um eu por baixo de minha pessoa e minha história, a servir-lhes de fundamento e fornecendo a elas a certeza de haver aí a minha “essência” – cuja existência transcende a banalidade da vida gratuita e trivial que vivemos (“transcendência” que qualquer sorvete de chocolate faz melhor) e possui uma natureza metafísica, cósmica, “à imagem e semelhança” do Absoluto e todo tipo de fantasias mais que a cabeça filosofante é capaz de elucubrar, por sobre o próprio umbigo e acerca da exuberância de seus “mistérios”.
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eu-era-o-seu-piloto