Por boas maneiras de se ensinar boas maneiras

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O menino queria brincar mais que comer e jogou uma almôndega na cara da avó.

O pai, no dever de ensinar ao filho o valor do respeito aos outros e aos muito mais velhos, só tem um tipo de linguagem possível para se fazer compreender pela criança. Mas ele exagera:

– “a próxima vez que você jogar comida na cara da velha, eu vou pegar o martelo e quebrar um a um os dentes da sua boca!”

(De preferência fazendo cara de mau, gritando e esmurrando a mesa etc. Um tabefe de amostra grátis também é recomendável.)

É. Tem vez que dá certo e o pavor faz a moral do pirralho pegar no tranco.

Mas tem vez que o filho da puta é tão estragado, mimado, folgado e insolente que ele truca (falta de couro, portanto a culpa é sua).

Agora lembre-se: nunca faça ameaças que você não possa cumprir – se não quiser, neste caso, transformar seu filho num monstro e você mesmo num rato. Pois as mais temíveis vão te exigir palavra, trabalho desgraçado (tipo de alferes inconfidente) e dinheiro sofrido. A porra do guri não paga sequer a própria enfermaria, o que dirá uma internação.

A onerosa desdentição do pivete terá ao menos servido a uma boa e justa causa. Os dentes se vão mas os princípios ficam! Até porque, depois que ele virar assalariado, compra uma dentadura e tá de boas. O mundo inteiro ainda há de te agradecer. No entanto, teria sido tão eficaz e mais simples se fosse só um tabefe mesmo…

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“Eu não aceito religião na minha aldeia”, ou: como a religião atenta contra a comunidade

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Religião é um tipo especial de ideologia e política, talvez o mais fundamental na transformação de uma criança em um indivíduo moderno.

Assim como a propriedade privada, o Estado, o mercado, o Direito etc., a religião não nasce na era capitalista. Aliás, o capitalismo nada mais é que o resultado, e posteriormente o meio de reprodução, do enredamento social dessas categorias herdadas da antiguidade e do feudalismo numa ampla, profunda e cancerosa, mas de “funcionalidade” historicamente inédita e sempre renovada, organicidade social – no interior da qual as velhas categorias chegam num estágio de plena (ou avançada) maturidade, quando finalmente escancaram tudo aquilo a que vieram.

É facílimo constatar que essas categorias, ainda que cada uma a seu modo, mas sempre articuladas, ao mesmo tempo que prometem civilidade, cidadania, igualdade, direitos, amor, comunhão e salvação, cá e depois no nada, reforçam nos indivíduos o egoísmo, a tara, a desconfiança, a hostilidade, o ódio, a violência e o distanciamento de um perante o outro; donde consolidam, pois, a formação das classes sociais em seu antagonismo puro, moderno.

Nenhuma delas, entretanto, pretende e permite de forma tão direta, declarada e desejada a introjeção, no indivíduo, do estranhamento entre o psíquico e o somático, o primeiro declarado divino e o segundo como lugar do pecado. E é como se tivesse sido maquinada para que, milênios depois, a concorrência mercantil e a alienação do trabalho não apenas nos parecessem algo familiar [(erguidas sobre o restolho do ethos comunitário, tornado esgarçado e impotente, rompido na aurora do mercado mundial e exigindo a emergência histórica do Estado moderno e seu aparato de força para o uso da violência em lugar da autonomia e responsabilidade dos indivíduos, com o que espera poder preencher o vazio da moral para sempre perdida; porém, não mais para servir de parâmetro das interações, e sim o contrário, conter o barril de pólvora da selva hobbesiana recém-nascida e para sempre posta sob pressão da radical cisão social e intra-individual. O homem-fragmento vivendo pedaços é a mais completa evidência do porquê a decadência da modernidade ter sido inevitável, a ponto de chegar no abismo dos séculos XX e XXI)], mas se tornassem a própria substância e referência da (de)formação da individualidade do homem moderno.

Mas, se uma criança é vulnerável e facilmente se dispõe a aceitar o enjeitamento dos pais et caterva, e portanto acreditar em qualquer tolice, não tendo como perceber seu próprio embrutecimento, diante de um povo em que os indivíduos constróem suas personalidades por sobre as referências que sua cultura, seus rituais, suas artes e seus mitos lhes fornecem há incontáveis gerações se torna óbvio que a religião é um capricho particular daquele grupo e indivíduo que a afirmam, e que seu único atestado de verdade, autoridade, realidade, moralidade etc. provém dela mesma e nem um pingo vindo de fora pode afiançá-la. Donde ateus e índios serem mais odiados que os fiéis de um Estado Islâmico, etc. Pois quem tem olho sabe que o rei é um trouxa, mas em terra de cegos, quem tem olho é aleijado.

Pra bom leitor, a religião é mais que uma ideologia, é um estupro ideológico; mais que uma política, é guerra genocida. A imposição consciente e deliberada de uma moral invertida, mas que ainda assim se gaba de sua presunçosa moralidade. Se isso depois vira darktube de pedofilia atrás dos altares e debaixo das batinas, por que deveríamos ficar surpresos? 

FORA TODA E QUALQUER RELIGIÃO do cotidiano humano, especialmente dos que vivem na saúde de não se escravizar na estupidez da fé!

 

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PS.: É preciso lembrar aos apressados: não existe religião indígena! Em primeiríssimo lugar, porque não tem escritura, mas é cultura oral, popular, que não exige fé nem combate cego aos concorrentes. É mitologia viva, e não seu cadáver encadernado; e por isso tudo não tem instituição, hierarquia, exército, banco, políticos e juízes na lista do off-shore e videos na deepweb.

 

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Cf. a entrevista de Arassari Pataxó no link: “eu não aceito religião na minha aldeia”

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O índio Arassari Pataxó esteve na Europa para alertar a comunidade internacional sobre a situação de seu povo.
“Eu não aceito religião na minha aldeia”, diz Pataxó sobre evangélicos

A doutrina do “Partido Sem Escola”

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Hoje um aluno meu escreveu em sua prova: “Escola Sem Partido já”.

Eu não sei o que leva alguém que é a favor da escola privada estudar em uma escola pública; mas estou certo que este caso mostra que às vezes a melhor escolha é afrontar a própria opinião – em prol de uma educação de qualidade e do abandono de preconceitos pueris comprados na esquina.

Entretanto, já nos encontramos no final do semestre e ainda vemos que certas opiniões insistem em se agarrar ao cérebro, tais como vampiros que se alimentam dos mais teimosos afetos.

 

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O que é, pois, a “Escola Sem Partido”?

Ao contrário do que diz ser, a “Escola Sem Partido” tem partido, sim: o “Partido Sem Escola”.

Trata-se de um projeto que consta do programa político do partido do presidente recém-eleito e de seus partidos aliados.

Portanto, a “Escola Sem Partido” não só tem partido, como tem mais de um.

 

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A “Escola Sem Partido” diz pretender combater o que identifica como “doutrinação” de alunos por professores.

Essa “doutrinação” é possível e acontece porque os alunos são passivos e vulneráveis.

Tal “doutrinação” é própria do que classificam, de acordo com parâmetros peculiaríssimos, como “pensamento marxista”.

O marxismo não possui a imparcialidade que a educação, dizem, deveria almejar; e, assim, é passível de ser caracterizado como “doutrina ideológica”.

Além disso, o marxismo quer “destruir a família” transformando as crianças em estéreis homossexuais através de sua “ideologia de gênero”. Os honrados varões da “Escola Sem Partido” temem que “se todos se tornarem gays, não haverá mais humanidade”. O que é mesmo que temem?

A “doutrinação marxista”, por fim, é culturalmente disseminada, de modo que há uma parcela enorme de professores marxistas nas escolas.

 

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Em primeiro lugar, é notável o uso pejorativo do termo “doutrinação” pelos partidários da “Escola Sem Partido”: pois ao seu redor gravitam pessoas e instituições que tomam partido de bandeiras religiosas.

Donde a “doutrinação” que combatem é apenas aquela que divergir da “verdadeira doutrina”. Como na religião, as teologias alheias são apenas formas de idolatria satânica e ignorância da verdadeira Verdade.

Doutrinação da Verdade “de verdade”, somente a dos partidários da “Escola Sem Partido”; do contrário, temos doutrinação “ideológica”, “marxista”, “parcial”.

Mas em que medida pode existir uma pura imparcialidade, um puro desinteresse social e político no saber? Em que medida essa suposta neutralidade social e política, ela sim, não seria apenas uma ficção para uso doutrinário e abuso político?

De forma ingênua ou, ao contrário, maliciosa, trata-se de fazer alguém acreditar que a proposta não possui “qualquer espécie de vinculação política, ideológica ou partidária”; como quem pretende que suas “idéias” ou, em termos mais concretos, seu posicionamento político, ideológico e doutrinário se situe acima das questões em debate na sociedade, acima dos conflitos e das lutas, acima dos antagonismos de interesses que estão postos pela própria situação dos indivíduos na relação social travada em torno da reprodução da sociedade.

Trata-se de nos fazer acreditar que seu discurso não seja ideológico, quando na verdade o é totalmente; que não seja político, quando o é integralmente; que não seja partidário, quando, mesmo que não estivesse (mas está) vinculado a nenhum partido específico, toma partido nas questões sociais.

Ao contrário dessa proposta de nivelamento do pensamento, aquele que toma partido de uma posição político-ideológica (o que não é o mesmo que vender o peixe de um partido político) se põe a participar de um debate, onde coloca argumentações, faz e ouve críticas.

Impedir que o professor tome partido é pretender um educador que não assume o que pensa e se coloca sobre o muro a respeito de questões que exigem uma posição, inclusive por uma questão moral.

Ou será realmente imparcial, desejável, saudável e ética a posição que se pretenda neutra frente ao fato histórico da escravidão no Brasil?

 

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A escola é lugar da filosofia e da ciência e, portanto, da pluralidade de idéias e de seu confronto, por meio do debate, da argumentação e da crítica. Doutrinação, ao contrário, é o que se faz na religião; e aí, não apenas nada se discute, mas se deve aceitar sem contestações e protestos a doutrina mais parcial possível, ainda que se afirme universal.

Se observarmos o que de fato ocorre nas escolas, fica fácil de perceber que professores que criticam e/ou deturpam Marx, o socialismo, o comunismo e demais alvos da “anti-doutrinação” não estão na exceção, mas são sim a regra, enquanto defendem a ideologia do empreendedorismo da venda de balas no sinal em direção ao futuro e certeiro cargo de executivo numa multinacional.

Além disso, principalmente as escolas “livres” – ou seja, privadas – sempre tomaram partido político, ideológico e religioso; enquanto as escolas públicas, principal alvo dos partidários da “Escola Sem Partido”, são laicas e prezam pela diversidade.

Ora, a “Escola Sem Partido” não apenas age politicamente em prol da doutrinação religiosa de professores e alunos, mas também toma partido pela privatização da educação.

 

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E os alunos?

E se “nossos intocáveis filhos” quiserem entrar para o PT? Ou para uma religião qualquer? Ou ter “orgulho” de serem brancos, brasileiros, héteros etc. (coisas nas quais a persistência certamente exige muito esforço)?

Ora, não cabe a ninguém bancar o paradoxal “anti-doutrinador” que lhes descerá goelas abaixo uma “doutrina da emancipação”. Que sigam o que lhes der na telha e errem por conta própria, pois nada pode ser mais contrário ao aprendizado e ao exercício de alguma liberdade e autonomia que esse discurso da “defesa de meu filho”.

A idéia de que haja ou possa haver essa tal “doutrinação” dos alunos por parte dos professores pressupõe

  1. que os alunos recebam passivamente aquilo que os professores dizem em aula, como numa espécie de “lavagem cerebral” em laboratório, o que só existe em ficções das mais tolas;
  2. que o próprio mundo humano não esteja permeado por idéias políticas, vindas de todos os lugares, e bem mais dos meios de comunicação (incluindo blogs, whatsapp, youtube etc.) do que da escola (mas quem proíbe os filhos de assistir à TV, acessar a internet e sair do quarto?);
  3. que o caráter político e ideológico dos assuntos que um professor aborda em sala de aula seja necessariamente danoso à formação cidadã do aluno;
  4. que tal caráter político e ideológico não esteja presente também na metodologia de ensino, e que haja assuntos, áreas e conteúdos ideológica e politicamente neutros.

 

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Ao contrário do que reza a “Escola Sem Partido”, ser “doutrinado” por uma ideologia ou muitas, bem como pela crítica às ideologias, não apenas é inevitável, como também faz parte da formação para a vida em sociedade.

“Defender” o filho contra as ideologias é pretender afastá-lo do próprio mundo, encerrando-o numa bolha contra tudo que o mundo lhe traz, o tempo todo, de ideologias e informações.

Isso sim é deletério. Não é meio de defender ninguém, mas sim de promover o atrofiamento de todos os aspectos de um indivíduo.

O desenvolvimento de uma consciência crítica não passa por se colocar à distância das ideologias, mas pelo saber que elas existem, porquê elas estão aí e o que elas dizem, para que o indivíduo possa formar uma posição própria a respeito delas. E isso vai acontecer de um jeito ou de outro, independente das intenções doutrinárias dos pais e dos professores.

Não devemos “respeitar” o conteúdo de uma ideologia, como se isso fosse o mesmo que respeitar o indivíduo que as abraça. Tudo pode e deve ser colocado em discussão. E nesse processo, por vezes mais lento e contraditório que gostaríamos que fosse, o indivíduo vai lapidar o seu próprio posicionamento. Tal como estamos fazendo neste exato instante, e ao longo de nossas vidas, sempre.

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A verdadeira doutrina é somente a do “Partido Sem Escola”

 

 

Coletivismo, estatismo, ateísmo, anti-humanismo, economicismo e historicismo: lendo Marx ao contrário

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Quando as filosofias e filosofemas penetram o senso comum, viram ideologias ou passam a constituir retalhos delas.

Ideologias podem ser mais ou menos consistentes. O senso comum é um mix delas, além de conter outras idéias não-ideológicas, provindas da prática imediata, do empirismo e de restolhos ideológicos do passado.

É por isso que devemos fazer uma ou outra dissecaçãozinha básica daquelas filosofias (além das mitologias etc). É isso que faz com que tenha importância a crítica a certos autores, mesmo que não passem de imbecis acadêmicos.

Marx não criticou Bruno Bauer, Max Stirner, Proudhon, Say, Mill, Bastiat e tantos outros por esporte ou sadismo, quando talvez apenas Kant, Hegel, Smith, Ricardo etc. mereceriam a sua atenção.

E agora o senso comum, alimentado com esse tipo de capim e suas novas derivações, absorveu certas críticas feitas a Marx que lhe imputam um coletivismo, um estatismo, um ateísmo belicoso, um anti-humanismo, um economicismo e um historicismo, mil outros etc.

São tantos os que afirmam e reproduzem tais idéias que não há como citar nomes. Mas o que importa são aquelas e não estes.

Marx não é um coletivista. Ao contrário, toda a sua obra afirma a necessidade de se emancipar os indivíduos das limitações impostas a eles pelas classes sociais, mercado, divisão do trabalho etc.

Mas o individualismo de Marx não se confunde com o burguês, que isola o indivíduo no egoísmo (como algo próprio de sua “natureza”) e o contrapõe à sociedade. Para Marx, ao contrário, o indivíduo só se realiza e efetiva seus potenciais no interior da sociedade, na ampliação das relações do indivíduo com o mundo.

O mesmo quanto ao humanismo: enquanto aquele que procede da mentalidade burguesa é idealista, utópico, egoísta e reflete o fetichismo mercadológico dos “homens de igual valor” e a tolerância do ecumenismo do dinheiro, o humanismo marxiano afirma a emancipação dos indivíduos em uma sociedade autogerida.

Onde não cabe, evidentemente, nem coletivismo reacionário, nem coletivismo estatal, burguês. Tomar o Estado é necessário simplesmente porque detém poder material, que não ficará sobre o muro no caso de uma revolução. É preciso rachar o Estado e voltar seu poder contra aquilo para o qual ele existe como protetor. Senão, fiquem aí sonhando com suas miseráveis comunidades hippies.

O fim da religião, tal como a conquista ou destruição do Estado, não é o ponto central do processo revolucionário. Marx não faz crítica da religião. Para ele, não interessa a Sagrada Família, mas sim aquilo que faz a família profana se projetar no além: é o aquém da sociabilidade corrompida pela propriedade privada que demanda a ilusão de se superar o “vale de lágrimas” no pós-fim, tanto quanto demanda a força do Estado para manter-se como areia movediça sobre a qual a sociedade se assenta.

Tornado estéril o solo da propriedade privada, e estabelecida a sociedade sobre a propriedade social dos meios do trabalho, a religião e o Estado perdem razão de existir.

Isso acontecerá por força de uma economia entendida como “sistema” (que não é outra senão a imagem do mecanismo do deus-mercado e sua “mão invisível”), ou de uma meta acima da história (tal como ensina a religião) a nos guiar? Se for assim, basta cruzar os braços e esperar a revolução me emancipar e fazer de mim um indivíduo autônomo. Nota-se a coerência dessas idéias com as demais imputações; mas para acreditar nelas é preciso ser pouco mais que um vegetal trancado num cubículo de classe média.

Há muito mais pra ser dito sobre essas coisas, mas não há quem leia dissertações ou livros num blog. Para quem quiser, indico algumas leituras – e trocamos as figurinhas depois.

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capitalismo e individualidade 2
Pode acreditar nisso, abiguinho