Coletivismo, estatismo, ateísmo, anti-humanismo, economicismo e historicismo: lendo Marx ao contrário

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Quando as filosofias e filosofemas penetram o senso comum, viram ideologias ou passam a constituir retalhos delas.

Ideologias podem ser mais ou menos consistentes. O senso comum é um mix delas, além de conter outras idéias não-ideológicas, provindas da prática imediata, do empirismo e de restolhos ideológicos do passado.

É por isso que devemos fazer uma ou outra dissecaçãozinha básica daquelas filosofias (além das mitologias etc). É isso que faz com que tenha importância a crítica a certos autores, mesmo que não passem de imbecis acadêmicos.

Marx não criticou Bruno Bauer, Max Stirner, Proudhon, Say, Mill, Bastiat e tantos outros por esporte ou sadismo, quando talvez apenas Kant, Hegel, Smith, Ricardo etc. mereceriam a sua atenção.

E agora o senso comum, alimentado com esse tipo de capim e suas novas derivações, absorveu certas críticas feitas a Marx que lhe imputam um coletivismo, um estatismo, um ateísmo belicoso, um anti-humanismo, um economicismo e um historicismo, mil outros etc.

São tantos os que afirmam e reproduzem tais idéias que não há como citar nomes. Mas o que importa são aquelas e não estes.

Marx não é um coletivista. Ao contrário, toda a sua obra afirma a necessidade de se emancipar os indivíduos das limitações impostas a eles pelas classes sociais, mercado, divisão do trabalho etc.

Mas o individualismo de Marx não se confunde com o burguês, que isola o indivíduo no egoísmo (como algo próprio de sua “natureza”) e o contrapõe à sociedade. Para Marx, ao contrário, o indivíduo só se realiza e efetiva seus potenciais no interior da sociedade, na ampliação das relações do indivíduo com o mundo.

O mesmo quanto ao humanismo: enquanto aquele que procede da mentalidade burguesa é idealista, utópico, egoísta e reflete o fetichismo mercadológico dos “homens de igual valor” e a tolerância do ecumenismo do dinheiro, o humanismo marxiano afirma a emancipação dos indivíduos em uma sociedade autogerida.

Onde não cabe, evidentemente, nem coletivismo reacionário, nem coletivismo estatal, burguês. Tomar o Estado é necessário simplesmente porque detém poder material, que não ficará sobre o muro no caso de uma revolução. É preciso rachar o Estado e voltar seu poder contra aquilo para o qual ele existe como protetor. Senão, fiquem aí sonhando com suas miseráveis comunidades hippies.

O fim da religião, tal como a conquista ou destruição do Estado, não é o ponto central do processo revolucionário. Marx não faz crítica da religião. Para ele, não interessa a Sagrada Família, mas sim aquilo que faz a família profana se projetar no além: é o aquém da sociabilidade corrompida pela propriedade privada que demanda a ilusão de se superar o “vale de lágrimas” no pós-fim, tanto quanto demanda a força do Estado para manter-se como areia movediça sobre a qual a sociedade se assenta.

Tornado estéril o solo da propriedade privada, e estabelecida a sociedade sobre a propriedade social dos meios do trabalho, a religião e o Estado perdem razão de existir.

Isso acontecerá por força de uma economia entendida como “sistema” (que não é outra senão a imagem do mecanismo do deus-mercado e sua “mão invisível”), ou de uma meta acima da história (tal como ensina a religião) a nos guiar? Se for assim, basta cruzar os braços e esperar a revolução me emancipar e fazer de mim um indivíduo autônomo. Nota-se a coerência dessas idéias com as demais imputações; mas para acreditar nelas é preciso ser pouco mais que um vegetal trancado num cubículo de classe média.

Há muito mais pra ser dito sobre essas coisas, mas não há quem leia dissertações ou livros num blog. Para quem quiser, indico algumas leituras – e trocamos as figurinhas depois.

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capitalismo e individualidade 2
Pode acreditar nisso, abiguinho

“Base materialista para a historiografia”: para muito além das abstrações do marxismo vulgar

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À Ideologia Alemã é creditada a formulação primígena do “materialismo histórico” de Marx.

Que, no entanto, jamais usou tal expressão.

É comum entendê-lo como parte ou aspecto de uma filosofia da história, um esquema “científico” amalgamado ou apoiado em um sistema filosófico, com direito a enunciar o enquadramento de supostas etapas históricas, suas leis de sucessão e um fim (nos dois sentidos da palavra) da história – algo igualmente estranho ao pensamento marxiano. É o chamado “materialismo dialético”.

A esse respeito, remeto os leitores a dois artigos desse mesmo blog: Dialética: motor das “etapas da história” no marxismo vulgar, e principalmente Marx: o materialismo contra a dialética

Nomes são apenas nomes. Portanto, aceitar o termo “materialismo histórico” é possível se por ele entendermos apenas uma reivindicação por uma “base materialista para a historiografia” – pela qual não se olhará a história através de uma estrutura ou lógica filosófica qualquer, montada a priori em relação aos fatos, mas antes se fará a apreensão dos fatos a partir deles próprios e deles se extrairá a sua lógica específica.

Por outro lado, não se trata de um empirismo “abstrato”, que não avalia os fatos de acordo com a atividade humana e apenas “coleciona fatos mortos”, desarticulados do “cenário de toda a história” – a sociedade, pois uma propriedade comum aos fatos históricos humanos é a sua produção pelos indivíduos. Isso é uma constatação empírica que os filósofos parecem incapazes de fazer.

Marx diz:

É nesse ponto que termina o fraseado oco sobre a consciência e o saber real passa a ocupar o seu lugar. Ao expor a realidade, a filosofia deixa de ter um meio onde possa existir de forma autônoma. Em vez dela poder-se-á considerar, quando muito, uma síntese dos resultados mais gerais que é possível abstrair do estudo do desenvolvimento histórico dos homens. Estas abstrações, tomadas em si, destacadas da história real, não têm qualquer valor. Podem quando muito servir para classificar mais facilmente a matéria, para indicar a sucessão das suas estratificações particulares. Mas não dão, de forma alguma como a filosofia, uma receita, um esquema segundo o qual se possam acomodar as épocas históricas. Pelo contrário, a dificuldade começa precisamente quando se inicia o estudo e a classificação desta matéria, quer se trate de uma época passada ou do tempo presente. A eliminação destas dificuldades depende de premissas que é impossível desenvolver aqui, pois resultam do estudo do processo de vida real e da atuação dos indivíduos de cada época. Destacaremos algumas destas abstrações, ilustradas com exemplos históricos, para contrapô-las à ideologia” (IA).

Ou seja: tais abstrações (como, p.ex., “modo de produção”) apenas servem para classificar, fazer uma aproximação, enquadrar o foco (se é que essa analogia ajuda mais que atrapalha; não tem nada a ver, p.ex., com o modus weberiano de seleção dos fatos), do que se deseja apreender de um dado período histórico; em hipótese nenhuma se trata de elaborar uma fórmula ou um “esquema segundo o qual se possam acomodar as épocas históricas”, como a filosofia da história pretende (por mais “dialética” que se auto-proclame), mas o contrário, criticar tal procedimento, tal como Marx declara ser sua intenção.

O estudo da história não parte destas abstrações, mesmo quando se trata de “abstrações razoáveis”, ou seja, “uma síntese dos resultados mais gerais que é possível abstrair do estudo do desenvolvimento histórico dos homens” – abstrações feitas a partir dos fatos, quer dizer, a posteriori. Este estudo é o “estudo do processo de vida real”, e por isso mesmo compreende vasto material empírico; à banalidade das construções filosóficas sobre a história é que Marx contrapõe a dificuldade da tarefa científica, do saber real, que não se adquire pela reles especulação de gabinete. “É necessário que, em cada caso particular, a observação empírica coloque em relevo, empiricamente e sem qualquer especulação ou mistificação, o elo existente entre a estrutura social e política e a produção” (IA).

Portanto, tais abstrações servem apenas como referenciais – não para serem “aplicados” na realidade (modo de produção tal, relação social de produção tal, forças produtivas contraditórias a tal, infraestrutura assim, superestrutura assado, logo revolução: nada disso mais é que uma noção radicalmente anti-materialista do que seja e pra que serve uma teoria) ou na circunstância específica de cada país, e sim para delinearmos as coordenadas do mapeamento que precisamos tracejar quando buscamos diagnosticar a situação própria do que pretendemos e necessitamos tornar nosso campo de ação; permitindo ainda reconhecermos em tal conjuntura, articulada com suas linhas de força históricas, as tendências de desdobramento dos fatos atuais, de modo a nos indicar quais devem ser as tarefas práticas a se cumprir para uma intervenção social efetiva.

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Capitalistas malvados e o ódio entre as classes

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É recorrente a acusação jocosa contra o marxismo de promover ódio entre as classes e taxar os empresários de malvados.

O tanto que essa difamação tem de ignorância já começa no fato de admitir e aceitar, sem a menor problematização, a existência de classes, que não é outra coisa que justamente o foco da crítica de Marx.

Seu modus operandi é o mesmo do mais simplório moralismo: primeiro, ela abstrai o indivíduo da sociedade; assim, ao torná-lo entidade auto-sustentada, isolada e independente de tudo mais, conclui: o empresário é apenas alguém que se deu bem, e a crítica ao capitalismo é pura inveja de quem não se esforçou [sobre isso, confira o texto: Inveja esquerdista contra os bem-sucedidos?].

Mas o marxismo percebe que os indivíduos situados na classe dominante, além de não terem escolhido nascer enquanto tais, devem jogar o jogo que o capital põe para eles, sob pena de quebrarem, ou seja, falirem. Desse modo, eles estão também subjugados ao capital, como todos os demais.

Da alienação do indivíduo capitalista, Marx disse: “seu gozo é apenas coisa secundária, repouso, gozo subordinado à produção e, portanto, mais calculado, e mesmo mais econômico, pois o capitalista soma seu gozo aos custos do capital e, por isso, aquele deve custar-lhe apenas uma quantia tal que o que foi esbanjado seja restituído pela reprodução do capital mais o lucro. O gozo é subordinado ao capital e o indivíduo que goza é subordinado àquele que capitaliza, enquanto antes sucedia o contrário” (MEF).

Por conta disso, adquirem traços morais próprios de quem conta centavos. É a vida que levam e a “profissão” que exercem que demandam tal caráter. 

Então, o indivíduo capitalista é moralmente repulsivo? Sim. Mas o alvo do marxismo não é o indivíduo, e sim as classes sociais que, ao lado da divisão social do trabalho, o determinam; e tem em vista justamente emancipar o indivíduo delas, inclusive os burgueses, cuja alienação – submissão ao mercado – é sem dúvida menos embrutecedora que a que se manifesta na classe pequeno-burguesa e na classe trabalhadora; entretanto, nem por isso deixa de sê-lo também.

Ao contrário do que ocorre no marxismo, é na própria ciência econômica burguesa que mais se vê moralismo. Sobre isso, diz Marx:

A economia política, esta ciência da riqueza, é assim também a ciência da renúncia, da privação, da poupança, e chega realmente a poupar ao homem a necessidade de ar puro e movimento físico. Esta ciência da maravilhosa indústria é ao mesmo tempo a ciência do ascetismo, e seu verdadeiro ideal é o avaro ascético, mas usurário, e o escravo ascético, mas produtivo. Seu ideal moral é o trabalhador que leva à caixa econômica uma parte de seu salário. Por isso, a economia política, apesar de sua aparência mundana e prazerosa, é uma verdadeira ciência moral. A mais moral das ciências. A auto-renúncia, a renúncia à vida e a todo carecimento humano é seu dogma fundamental. Quanto menos comas e bebas, quanto menos livros compres, quanto menos vás ao teatro, ao baile, à taverna, quanto menos penses, ames, teorizes, cantes, pintes, esgrimes etc., tanto mais poupas, tanto maior se torna teu tesouro, que nem traças nem poeira devoram, teu capital. Quanto menos és, quanto menos exteriorizas tua vida, tanto mais tens, tanto maior é tua vida alienada e tanto mais armazenas da tua essência estranha. Tudo  o que o economista tira-te em vida e em humanidade, tudo isso ele te restitui em dinheiro e riqueza, e tudo o que não podes, pode-o teu dinheiro. Ele pode comer, beber, e ir ao teatro e ao baile; conhece a arte, a erudição, as curiosidades históricas, o poder político; pode viajar, pode fazer-te dono de tudo isto, pode comprar tudo isto; é a verdadeira fortuna. Mas sendo tudo isto, o dinheiro não pode mais que criar-se a si mesmo, comprar-se a si mesmo, pois tudo o mais é seu escravo, e quando eu tenho o senhor, tenho o servo e não preciso dele. Todas as paixões e toda atividade devem, pois, se afundar na avareza. O trabalhador só deve ter o suficiente para viver e só deve querer viver para ter” (MEF).

A questão moral está absolutamente fora de questão para o marxismo – que, muito antes de pregar qualquer discórdia entre ricos e pobres, apenas a constata, e ainda a explica. Comunistas não precisam promovê-la, ela já estava aí bem antes.

Mas o mesmo mecanismo de pensamento abstrato leva o acusador antimarxista a crer que a luta de classes “não existe”, “não passa de um bando de petistas e antipetistas se atracando na rua” ou “é invenção do PT para desunir o povo” (linda palavra essa, “o povo”, no interior da qual as diferenças entre um acionista de uma corporação multinacional e o seu Ninguém “morador de rua” desaparecem!). Acontece que a expressão “luta de classes” não surgiu da cabeça de Zé Dirceu ou da de Marx. Ela surgiu na França dos tempos da revolução burguesa, e traduz um fenômeno perfeitamente empírico: a relação inversa entre lucro e salário, donde o antagonismo – radicado na própria essência da sociabilidade – entre os interesses da classe trabalhadora e classe burguesa. Que isso possa tomar as mais diversas formas, incluindo violência e todo tipo de ódios, é apenas uma consequência trivial.

Mas não espere que um moralista entenda qualquer coisa sobre classes sociais: porque isto está para muito além do que a avareza de seus olhos o permitem enxergar.

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luta de classes não existe - seu favelado burro
Para quê responder a mensagem, se eu posso desclassificar o mensageiro?

Kant: Copérnico Frankenstein

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Outro dia eu vi um artigo sobre Kant em iorubá na Wikipedia e falei umas boboquices a respeito. Hoje, meu amigo Igor puxou o assunto, e aí eu resolvi escrever essa notícula sobre o moço.

Como é que Kant faz sua copérnica filosofia? Simples: ele pega Platão e deforma o aristocrata até ele virar um burguês.

Na falta de matéria prima autenticamente filosófica – isto é, grega -, Kant tem de se haver com os xing-lings modernos.

Então, pra começar a conversa, ele cata o cogito cartesiano e hipostasia o que já era puro clorofórmio, até lhe caber o termo “transcendental”. Já rola de sentir uma onda-tipo de sintonia com o kósmos.

É o sujeito metafísico. Eu Absoluto, A=A, Representação Mundial, Vontade de Potência, todas essas e demais baboseiras do idealismo alemão se alimentam do “ergo sum” inflacionado em “ego sum qui sum” – e posteriormente efetivado no “eu sou o que sou, e isso é tudo o que eu sou”, no feeling and soul, neither one nor other, “eu sou o marinheiro Popeye”.

Mas Kant não é apenas um Descartes intoxicado de espinafre enlatado. O sagaz relógio de Königsberg também flertava com o despertador empirista de Dùn Èideann (a.k.a. Edinburgh), e é aí que entra Platão: o beato ateu prussiano se inspira na mistura de Parmênides e Heráclito que o destemido Arístocles de Largas Omoplatas realizou em seu doutorado… uma façanha que rendeu a este um puta dum pito da banca na hora da defesa: onde já se viu tamanho ecletismo? Não pode!

Só tem que o nobre ateniense não era nenhum grosseiro, e sambou em plena apologia de sua tese. Demonstrou que suas Idéias eram autênticas crias do lógos efesiano e da alétheias eleata. Movimento e paramento eram fáceis de conciliar: aqui, a razão; lá, a sensibilidade. É o Tcham!

Modernoso, manolo Kant não pode pensar suas próprias idéias do jeito que Platão fez (e Hegel fará depois, ao parir a “superjetividade” alemã – pois acreditava na Bíblia): como realidades anteriores e determinantes da subjetividade. Seguindo Cartesius e Rock Hume (que por sua vez era Francisco Toucinho e João Fechadura levados à sério), nosso herói transcendental mete o lógos na cabeça e faz uma gororoba filosófica deveras audaz, ao consubstanciar o racionalismo gaulês – que vinha com garantia da fábrica de acesso claro e evidente à alétheias – e o ceticismo bretão do empirismo abstrato, que é um proto-positivismo sem as ilusões dos netos do próprio Kant.

Resultou no Frankenstein “revolucionário”, Copérnico de trás pra frente: a subjetividade é uma ilha autônoma e independente (tal como o próprio Cogito, o solipsismo berkeliano ou as homeomerias leibnizianas, assentados no céu do deus matemático cartesiano ou na natureza spinozista, et demais variações), pois a realidade é inacessível. Mas ela existe! E determina, sem deixar indícios, aquilo que os filtros estéticos do sujeito levam para a lógica meter numa fôrma e tals. Em uma palavra, agnosticismo. Sei que nada sei, mas isso é fenomenal e já me basta. Passo importantíssimo para aprofundar ao limite do absurdo o abismo em que Hume já havia se hospedado.

Kant faz isso de forma tão competente que mal dá pra perceber o quão artificial é. Mas Fichte, o oligofrênico, manjou que a parada tava sinistra e foi fazer a barba do Platão burguês com sua Gillette de Ockham: se essa porra de coisa-em-si é incognoscível, pra que ela serve então? Corta.

Houvessem os alemães importado o bom-senso do Renato Cartésio, talvez Fichte tivesse perguntado: como é que pode haver novo conhecimento, se ele é constituído de idéias já presentes em nossas cabeças, ao mesmo tempo que se afirma uma determinação dos fenômenos por uma realidade que não deixa nenhuma impressãozinha digital como pista para nós? Se tem algo a se conhecer nessa história toda, é justamente a coisa-em-si.

Pois, enquanto Kant duvida dessa possibilidade, até mesmo os bois estão ruminando a coisa-em-si no campinho logo ali.

Hegel vai ter de levar esse papo até o seu fim. Valeu, jovem stuttgartiano! Você superou mesmo o dualismo sujeito x objeto com seu “idealismo absoluto”. Já seria um adeus a Kant. Pena que os bastidores da filosofia não se ocupam de nenhum lógos ou alétheias.

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kant óculos