Debates e Debatedores, Opiniões e Razões, Golpe e Materializações

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Tem uma multidão de gente que discorda de mim, e isso é absolutamente normal.
 
Infelizmente, muitas coisas atrapalham o debate, e às vezes fica difícil saber se há uma opinião na roda que seja mais consistente e coerente com o assunto discutido.
 
Acontece ainda do pensamento precisar de tempo para avaliar as idéias, e só conseguir chegar num veredito depois que o debate já acabou.
 
E aí tem vez que a gente vê que nossas idéias não estavam bem assentadas. Pra quê discutir? Pra gente aprender aquilo que achava que já sabia.

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Vou citar um exemplo que aconteceu comigo mesmo. (Quem estiver sem muita paciência, pula esse causo e continua no assunto mais abaixo.)

Um mês antes da votação na Câmara da abertura do processo do impeachment de Dilma Rousseff, eu estive no mural de um ex-aluno, discutindo veementemente com um outro sujeito e afirmando, contra o que ele dizia, todos os porquês (que eu tinha na cabeça e na minha frente) daquilo ser um golpe.

Eu dizia que “as afrontas ao direito” feitas contra o PT – eu citei a divulgação dos grampos e não haver denúncia, investigação ou processo aberto contra Dilma – “feriam os princípios de um Estado Democrático de Direito”. Em suma: “como pode não ser um golpe?”.

Um ou dois dias depois, coloquei a cabeça de volta ao lugar e percebi que ele tinha razão, ou eu é que não tinha nenhuma, pois estava apenas boiando na corrente de uma idéia que a ampla maioria da esquerda replicava – com muito mais poder de disseminação que bom senso. Uma tese fundamentada mais na razão da força que na força da razão.

Eu estava engolindo a lorota republicana das regras do “Estado Democrático de Direito”; estava caindo na conversa mole da esquerda brasileira – que não lê Marx, e sim Hannah Arendt, e quer “melhorar a democracia”.

Percebi, na prática do enfrentamento ideológico, que eu estava simplesmente fantasiando sobre uma reles noção de “Estado Democrático de Direito” e de suas regras; e comecei a desconfiar, como quem intui o erro, vislumbra o caminho mas não se sente seguro por onde havia de seguir.

Em meio caminho dessa vida, perdido na selva escura, vi um vulto no deserto e gritei-lhe “ouve meus ais, sejas sombra ou viva alma”! E me veio a voz, “vivo fui, não sou mais; desde Tréveris de Roma eu vi e vivi revoluções, e de exílio em exílio eu fiz ciência”. “És então tu Marx, fonte que expande de sabedoria um largo rio?” – assim foi que Dante encontrou Virgílio, seu guia para sair da caverna.

Marx é uma ousadia! Pois é preciso ousar compreender as coisas.

Foi então que as coisas se encaixaram: o Judiciário não estava sendo pollitizado, assim como o Legislativo não estava sendo judicializado. Os três poderes não eram, nunca foram e não são puros, e suas atribuições não se isolam umas diantes das outras. Quem, afinal, julgou o processo? Foi o Senado. Dilma apelou pro Judiciário e perdeu. Legitimou o processo até o fim. Não houve ruptura NENHUMA com a Constituição e com a institucionalidade. Toda a novela foi política; e a marmelada judicial das pedaladas foi apenas o verniz tosco. Mas foi sobre este que a tese do golpe se apoiou: afirmando a ilusão do aspecto jurídico como preponderante, a aparência de um processo que “deveria ser justo” – quando o jurídico e o que seja “justo” é determinado politicamente. E isso porque era o que restava ao PT: transformar a sua derrota política na derrota de todo o “Estado Democrático de Direito”, o que poderia angariar-lhe apoio para resistir ao impeachment. Perdeu duas vezes: na arena política e na arena ideológica.

Posteriormente, eu vim a saber que o PSTU também rejeitava o discurso do golpe. Beleza, eu não estava sozinho. Não que eu pense que a quantidade de pessoas e de likes que sustentam uma idéia seja garantia de sua verdade, ou mesmo um mero indício desta. Se eu acreditar na verdade de uma opinião e todo o resto da humanidade me achincalhar, vou apenas lamentar que estejam no erro. Por que então estou dizendo isso? Porque estar no isolamento te faz acreditar que você está errado, e estar na torrente te faz acreditar que está certo. Isso é uma armadilha sofística tribal do pensamento, e é exatamente disso que a mitologia se nutre enquanto mata a razão.

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Voltemos ao assunto. Contei o caso acima pra dizer que mudei de idéia, quando a razão me fez reconhecer a fragilidade da opinião anterior, que eu havia comprado pronta na internet, e estruturou de forma sólida a que eu tinha ainda em formação e com peças por articular.
 
Procurei testar meu novo posicionamento e, até agora, ninguém dos muitos com quem discuti a questão me deu bons motivos para achar que devo voltar atrás.
 
Enfim. Não tive e não tenho – e não sei porquê deveria ter – nenhum receio ou vergonha de mudar de opinião. Era apenas uma idéia. Ela não tem a minha cara. Eu não sou proprietário dela. Não é porque abraço uma idéia que afirmo ser ela a melhor, mas porque ela demonstrou ser a melhor que a abracei. E se ela não é boa diante de outra, por que mantê-la?
 
Alguém pode me dizer: ora, uma idéia que eu sustento formata alguma parte de minha pessoa, e certas idéias são mais fundamentais que outras. Wittgenstein disse algo nesse sentido: imagine um indivíduo que passa pela experiência de ser abduzido por ET’s. O que pode restar de consistência na sua forma de ver o mundo, se até então ela se estruturava na coerência de algumas idéias básicas – e dentre elas, a de que um encontro com ET’s é coisa mais remota que ganhar na Megasena?
 
Ok, mas não estamos falando de opiniões sobre coisas extraordinárias. E quando discuto com religiosos, não sou eu que acredito em teologia. Aliás, aposto que um religioso, sim, ficaria completamente absurdado se presenciasse um “milagre” – principalmente por acreditar que está vendo exatamente isso, um “milagre”.
 
(Certa vez, fui numa médium que fazia “materializações”: ela quebrou um ovo cru de galinha na minha frente, e eu vi inflar de dentro dele uma bola engosmada da gema do ovo cozida. Ela cutucou o ovo e me mostrou dois ossos amarrados saindo de repente da bola, que disse ser uma bexiga de sapo. Explicou que o espírito tal foi no cemitério tal e desmanchou o feitiço que fulano fez pra mim. Esqueci de perguntar a ela: Fulano de quê? Depois do assombro, conclui a única coisa razoável acerca do fato: primeiro, explicar uma coisa usando um discurso que apela pro inexplicável, ou melhor, pro absurdo – “o espírito” que tirou a bexiga da terra material com suas mãos imateriais – mostra que, seja lá o que houve ali, a médium também não sabia do que se tratava; segundo, talvez a médium soubesse do que se tratava: qualquer mágico de circo faz você passar por uma “experiência extraordinária” – ou, como diz o outro, um “milagre”. Por fim, a realidade é maior que o pensamento e o conhecimento; por que não admitir nossa ignorância, ao invés de decalcar uma mitologia idiota qualquer por sobre o fenômeno?)
 
Por outro lado: não poderíamos dizer que há algo de minha pessoa numa opinião em que eu acredito? Afinal, agimos de acordo com o que pensamos, investimos afeto em muitas de nossas idéias, etc.
 
Ok, existe certa transitividade entre o sujeito que pensa e aquilo que ele pensa. Mas, se isso fosse não um trânsito, e sim uma unidade, não haveria o que se discutir, não haveria o que se ensinar, não haveria nada para além daquilo que “eu acho”. Abandonar certas opiniões pode ser mais que doloroso: pode ser libertador.
 
Entretanto, há quem subjetiviza as idéias a tal ponto que as trata como uma extensão sensível de sua pessoa. Afirma que o valor de verdade e racionalidade de sua opinião é estimado por si mesmo, e não reconhecido por ele como pertencente à própria idéia. É a sua opinião de pelúcia, seu bichinho de estimação abstrato, sempre acompanhado pela chupeta da fé.
 
Tem uma multidão de gente que discorda de mim, mas o que é lastimável é que uma boa parte dessa multidão tem medo que eu, ou outra pessoa qualquer, pegue suas opiniões e descasque. Como se a opinião fosse uma coisa “sua”.
 
Isso é o que me parece mais estranho: a criatura não bota fé no que acredita, e aí não ousa discutir. Prefere continuar pensando em algo que acredita não ser muito resistente à crítica, ao invés de se permitir descobrir coisa melhor no que pensar e acreditar.
 
Isso é uma forma de vaidade: o cidadão monta sobre os ombros de uma crença equilibrista e acredita que ela é bem mais que uma idéia, é constituinte de sua própria personalidade.
 
Donde a crítica à idéia se tornar, no crânio de quem se percebe tão etéreo como uma idéia é, “crítica” contra sua tão inestimável pessoa. Pois a mensagem é um apêndice do mensageiro.
 
Certamente, trata-se do cúmulo do egocentrismo de baixa autoestima, que nega ao outro o direito de criticar “o ~seu direito~ em acreditar numa asneira”; afinal, mesmo sabendo, ou desconfiando, que sua crença não tem valor de verdade, essa crença se apóia noutra crença: a revelação de que, seja lá a patranha que abrace, mesmo a mais idiota se constitui numa “afirmação” de sua individualidade, pois é “sua”; qualquer delírio possui uma “razão particular” que o justifica, e tudo isso estabelece sua liberdade e autonomia, ainda que sendo a negação de ambas.
 
Compreender como uma subjetividade se faz assim é assunto para muitas letrinhas. Melhor ser breve e apontar o indício, à guisa de conclusão.
 
A sociedade burguesa produz e cultiva diligentemente o egoísmo no qual educa os indivíduos. Ou seja, a subjetividade é formada em meio a uma sociabilidade anti-social, donde todas as referências humanas e naturais que o sujeito pode ter como parâmetros da vida prática e do pensamento se retiram para o interior de sua individualidade isolada, procurando se salvar da guerra de todos contra todos e encontrando solo fértil para o seu próprio apodrecimento e esterilidade. O indivíduo é impelido a reclamar para si o legítimo direito ao egoísmo, e portanto à perversão, à estupidez, etc.; direito que se confunde com privilégio, na medida que o egoísmo jamais se afirma perante os outros sem ostentar a feição de um abuso.
 
Um privilégio que reivindica para si a legitimidade do direito, o direito que a sociedade afirma ser particular, como uma forma de justo privilégio: a prerrogativa de ser Eu Absoluto, parâmetro de todos os critérios, medida de todas as referências, fundamento de todos os princípios, monarca de todos os poderes, rei da realidade, soberano divino da potestade maior – o seu umbigo.
 
É fatal: quem não discute aquilo que pensa, em que acredita e ao qual inclusive se identifica acaba fazendo da misologia a sua profissão de fé e cultivando a autolatria de um ego inchado à vácuo.

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Chiclete com Banana
Autoridade no assunto “EU”

Coletivismo, estatismo, ateísmo, anti-humanismo, economicismo e historicismo: lendo Marx ao contrário

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Quando as filosofias e filosofemas penetram o senso comum, viram ideologias ou passam a constituir retalhos delas.

Ideologias podem ser mais ou menos consistentes. O senso comum é um mix delas, além de conter outras idéias não-ideológicas, provindas da prática imediata, do empirismo e de restolhos ideológicos do passado.

É por isso que devemos fazer uma ou outra dissecaçãozinha básica daquelas filosofias (além das mitologias etc). É isso que faz com que tenha importância a crítica a certos autores, mesmo que não passem de imbecis acadêmicos.

Marx não criticou Bruno Bauer, Max Stirner, Proudhon, Say, Mill, Bastiat e tantos outros por esporte ou sadismo, quando talvez apenas Kant, Hegel, Smith, Ricardo etc. mereceriam a sua atenção.

E agora o senso comum, alimentado com esse tipo de capim e suas novas derivações, absorveu certas críticas feitas a Marx que lhe imputam um coletivismo, um estatismo, um ateísmo belicoso, um anti-humanismo, um economicismo e um historicismo, mil outros etc.

São tantos os que afirmam e reproduzem tais idéias que não há como citar nomes. Mas o que importa são aquelas e não estes.

Marx não é um coletivista. Ao contrário, toda a sua obra afirma a necessidade de se emancipar os indivíduos das limitações impostas a eles pelas classes sociais, mercado, divisão do trabalho etc.

Mas o individualismo de Marx não se confunde com o burguês, que isola o indivíduo no egoísmo (como algo próprio de sua “natureza”) e o contrapõe à sociedade. Para Marx, ao contrário, o indivíduo só se realiza e efetiva seus potenciais no interior da sociedade, na ampliação das relações do indivíduo com o mundo.

O mesmo quanto ao humanismo: enquanto aquele que procede da mentalidade burguesa é idealista, utópico, egoísta e reflete o fetichismo mercadológico dos “homens de igual valor” e a tolerância do ecumenismo do dinheiro, o humanismo marxiano afirma a emancipação dos indivíduos em uma sociedade autogerida.

Onde não cabe, evidentemente, nem coletivismo reacionário, nem coletivismo estatal, burguês. Tomar o Estado é necessário simplesmente porque detém poder material, que não ficará sobre o muro no caso de uma revolução. É preciso rachar o Estado e voltar seu poder contra aquilo para o qual ele existe como protetor. Senão, fiquem aí sonhando com suas miseráveis comunidades hippies.

O fim da religião, tal como a conquista ou destruição do Estado, não é o ponto central do processo revolucionário. Marx não faz crítica da religião. Para ele, não interessa a Sagrada Família, mas sim aquilo que faz a família profana se projetar no além: é o aquém da sociabilidade corrompida pela propriedade privada que demanda a ilusão de se superar o “vale de lágrimas” no pós-fim, tanto quanto demanda a força do Estado para manter-se como areia movediça sobre a qual a sociedade se assenta.

Tornado estéril o solo da propriedade privada, e estabelecida a sociedade sobre a propriedade social dos meios do trabalho, a religião e o Estado perdem razão de existir.

Isso acontecerá por força de uma economia entendida como “sistema” (que não é outra senão a imagem do mecanismo do deus-mercado e sua “mão invisível”), ou de uma meta acima da história (tal como ensina a religião) a nos guiar? Se for assim, basta cruzar os braços e esperar a revolução me emancipar e fazer de mim um indivíduo autônomo. Nota-se a coerência dessas idéias com as demais imputações; mas para acreditar nelas é preciso ser pouco mais que um vegetal trancado num cubículo de classe média.

Há muito mais pra ser dito sobre essas coisas, mas não há quem leia dissertações ou livros num blog. Para quem quiser, indico algumas leituras – e trocamos as figurinhas depois.

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capitalismo e individualidade 2
Pode acreditar nisso, abiguinho

“Eu”: a ilusão de uma singularidade absoluta

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eu-tenho-um-like-e-nao-te-dou

 
A questão ou conjunto de questões que nos leva ao misticismo, à religião, à feira hippie, ao veganismo, ao liberalismo e ao psiquiatra (a ordem dos fatores não altera o autoflagelo) não é a constatação assombrada de cada um de nós existir – nesse exato instante, irrepetível na história do universo -, saber que vai morrer, saber que possui ou é um Eu totalmente próprio, mas sim:
 
Por que eu sou esse eu aqui?
 
Centrado aqui, surgido de repente do nada e tendo a sensação de que sou um eu diferente do eu dos outros (pois só este eu sou eu)?
 
Por que aqui, nesse tempo? Por que não sou outra pessoa?
 
Alguém outro que vivesse tudo que eu vivi e reagisse da mesma forma que fiz: seria eu?
 
Fosse outro o espermatozóide… fosse outro o pai, apesar de ninguém saber – eu seria ainda esse eu aqui?
 
Tivesse vivido e feito outras coisas: eu não continuaria me identificando como eu, ainda que minha pessoa fosse melhor em umas, pior em outras coisas, poucas ou muitas?
 
Mas é óbvio que isso parece a nós um evento extraordinário no mundo – donde, aliás, deus “necessariamente” ter de existir; pois, se há alguma coisa que dá a deus uma razão de ser, essa coisa sou eu, além do fato de meu eu ter surgido do nada pra cá e nesse tempo. O que não pode jamais ser algo infundado, mas tem um propósito, ainda que eu seja um babaca.
 
(Deus me dá uma mãozinha e eu garanto sua existência. Descartes já havia cantado essa pedra e MC Escher desenhou depois.)
 
Fechando o parêntese, o fato é que colocamos tais questões partindo de nós mesmos, isto é, de tudo aquilo que constitui nossa subjetividade; portanto, de nossa memória, de nossos afetos etc.
 
É preciso ter cuidado ao cutucar, com perguntas assombradas, o próprio afeto (se bem que cuidado nenhum preenche a falta de juízo), essa força biológica e culturalmente determinada (especialmente pela emergência da individualidade na era moderna) e que é um verdadeiro barco de Caronte esperando para nos levar pro fundo da consciência natural, rústica, infantil, irracional, sentimental e apaixonada da bolha mitológica, com a devida “tempestade e ímpeto” que lhe cabe.
 
(Quando essa merda vira massa de manobra na política, a tendência é afundar toda a população na barbárie com orgulho. Fé em deus! Deixa a vida me levar, etc. Jamais antes de 1848 e das guerras do século XX poderia haver algo como o existencialismo, a filosofia do egoísmo e do abandono.)
 
Daí a aparência de que há um eu por baixo de minha pessoa e minha história, a servir-lhes de fundamento e fornecendo a elas a certeza de haver aí a minha “essência” – cuja existência transcende a banalidade da vida gratuita e trivial que vivemos (“transcendência” que qualquer sorvete de chocolate faz melhor) e possui uma natureza metafísica, cósmica, “à imagem e semelhança” do Absoluto e todo tipo de fantasias mais que a cabeça filosofante é capaz de elucubrar, por sobre o próprio umbigo e acerca da exuberância de seus “mistérios”.
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eu-era-o-seu-piloto

O que é a morte?

Morres, amigo, também tu.

Por que te lamentas assim?

Morreu antes Pátroclo,

que era muito melhor que ti.

(Ilíada, XXI).

 

O que é a morte?

A morte é o “dexistir” do Eu.

Quando o corpo se desliga e tem início sua decomposição, chega ao fim o processo que chamamos de mente e que decorre do funcionamento do cérebro. Morto o tecido cerebral, não há mais memória; ou seja, o Eu se apaga. Os sentidos se encerram e já não há mais consciência a que pudessem informar acerca do mundo ao redor.

aquiles chora patroclo

E a alma? A alma é coisa distinta da mente? Se for, o destino dela será tão interessante a nós como o destino de nossa carne: se vai virar grama, comida de verme ou éter pairando no nada, é algo completamente indiferente, pois o que importa é a consciência, a memória, o Eu.

Nenhum Eu sobrevive ao fim do cérebro, de modo que morrer nada mais é que abandonar completamente a sociedade e imergir na mais plena harmonia com a natureza.

Contudo, e em um sentido bem determinado e completamente distinto do que normalmente se entende a respeito, o espírito pode continuar vivo, se cultivado pelos indivíduos ao longo das gerações e enquanto durar essa cultura.

O espírito não é uma coisa. O espírito é memória e linguagem. Portanto, não é apenas o resultado da atividade cerebral, mas ainda, e essencialmente, é um produto da sociedade.

Virar puro espírito é passar a existir enquanto memória, sem entretanto haver consciência e identidade de si, quer dizer, memória própria: agora o espírito não mais é subjetivo e a memória se tornou história. Que outros cuidem dela com leveza e graça!

Achille-e-Patroclo

Nada disso é misterioso. O contrário, sim, é obscurantismo puro.

Persiste ainda hoje a força soturna que a mitologia exerce sobre nós. E isso porque ela está ancorada em uma forma estranhada de afeto, que não encontra meios autênticos de se realizar num mundo onde impera o estranhamento entre os próprios indivíduos. Donde a força da mitologia estar na debilidade do afeto, subjugado e dominado pelo medo; e se apresenta como o que resta pensar com paixão – não apenas na medida que a sociabilidade é hostil, mas também à medida em que a própria mitologia rejeita a transformação da sociedade.

Ora, a fé procura se justificar através do medo da morte, para o qual ela traria o apaziguamento de uma esperança anti-ontológica, anti-realista, absurda. Essa é a medida de seu valor: um pretenso bem que se ergue por cima de uma fobia, de um disparate e de uma vida degenerada, os quais cuida de manter no horizonte.

Pois a sociedade estranhada do cada-um-por-si forja uma moral invertida e elege como valor o que é desvalor.

Assim é que a mitologia e a fé encarregam-se de nos manter sob a tutela de uma moral heterônoma, pueril. Mas é preciso considerar as coisas tais como elas são e reconhecer que temer ou se preocupar com a morte é um reles egoísmo. Se há alguma coisa digna de preocupação aqui é, no máximo, a forma como acontecerá; mas, ainda mais importante, com quem vai pagar o enterro.

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